Um clube de aventureiros

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Isabel.Coutinho@publico.pt

Aos vinte e três anos, o escritor e crítico literário brasileiro José Castello, estava no início da sua carreira jornalística e resolveu pegar nuns textos de ficção que secretamente escrevia e enviá-los para casa de Clarice Lispector, a autora de “A Paixão segundo G.H.”. Envia-lhe a sua morada e telefone na esperança de que ela lhe respondesse.

Os dias passaram e ele desistiu de esperar. Numa véspera de Natal recebeu um telefonema de “Clarrrrice Lispectorrr” que lhe ligava para falar dos contos: “Só tenho uma coisa para dizer: você é um homem muito medrrroso. E com medo ninguém consegue escrever.”

Até hoje Castello não pode escrever seja o que for sem pensar em Clarice. E nós, os leitores de Clarice e de José, depois de lermos esta história contada por ele no seu maravilhoso livro “Inventário das Sombras” (edição brasileira na Record, 1999), também nunca mais a conseguimos tirar da cabeça. É que a história não termina aqui.

Dois anos depois desta conversa, corria a notícia de que Lispector nunca mais ia receber a imprensa e por isso, “O Globo”, jornal onde Castello colaborava, pediu-lhe que conseguisse uma entrevista. Ele telefonou à escritora e, para seu espanto, ela disse que sim. Chegou o dia e a hora. Castello está em frente ao porteiro do apartamento da escritora no Rio de Janeiro e ele diz-lhe que “D. Clarice” não está”.

O jornalista decidiu que não ia desistir, insistiu. Ela autorizou que ele subisse. Lembrou-se que ele era o “medrrroso”. Mas o pior estava para vir. Estavam sentados na sala, o jornalista e a escritora, e ela começa a gritar: “Tire isso daqui, não quero isso aqui”. A causa da perturbação era o gravador que o jornalista pousara em cima da mesa. Peripécias para cá, peripécias para lá; o gravador acabou por ser trancado por Clarice Lispector num armário até ao final da conversa. A entrevista correu muito mal mas, conta Castello, acabaram os dois a comer bolo de “merengue e frutas velhas” na cozinha. E o texto, que nasceu deste encontro, é uma obra-prima.

“Talento apenas não faz um escritor. Deve haver um homem por trás do livro”, disse um dia Emerson e quem lembra a frase é Castello, que todos os sábados assina uma coluna no “Prosa & Verso”, suplemento literário do jornal brasileiro “O Globo”. José Castello, que entrevistou José Cardoso Pires e José Saramago, interessou-se sempre mais por “esses homens e mulheres que estão ocultos nos livros do que por aqueles sujeitos, resolvidos e às vezes até um pouco ridículos, que pontificam na mídia em seu lugar.”

O autor da biografia “Vinicius de Moraes: O poeta da paixão” (Companhia das Letras, 1993. Prémio Jabuti) e mais recentemente de “A literatura na poltrona” (Record, 2007) inaugurou este mês um blogue. Chamou-lhe A Literatura na Poltrona. Considera-o uma espécie de clube de leitores. Um sítio onde os leitores se podem apoiar e até compartilhar aflições, onde possam “trocar leituras e experimentar novas maneiras de ler”.

“A cada página, esbarramos em perguntas sem respostas, em desafios, em enigmas. Ao fechar o livro, nunca sabemos se vencemos ou não”, escreve José que vê a literatura como uma aventura e quando escreve nos leva de aventura em aventura.

“Por isso nós, leitores, somos tão solitários. Ao abrir um livro, o mundo à nossa volta se apaga. Estamos sozinhos e não se pode escapar disso. A experiência da leitura é o mais radical contacto com a solidão que já conheci.”, continua José Castello. “Ninguém nos protege, estamos sozinhos, não sabemos onde pisamos. Não temos garantias, nem sabemos onde iremos chegar. Somos leitores. Leitores comuns.” Mas, apesar disso, quando o lemos (ao José Castello), nunca nos sentimos sozinhos. O blogue Literatura na Poltrona é um clube de aventureiros.

A Literatura na Poltrona
http://oglobo.globo.com/blogs/literatura/

(crónica publicada no suplemento ípsilon, do jornal PÚBLICO, de 26 de Março de 2010)

Um comentário a Um clube de aventureiros

  1. Descobri teu blog há pouco tempo e é a primeira vez que comento. Como amo a literatura da Clarice, fiquei curiosa sobre o texto criado a partir do encontro entre os dois, Clarice e Castelo.
    Voltarei. Abraço.

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