Que seria do Rio sem Carlito Azevedo?

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(Carlito Azevedo, a fotografia é de Rafael Moraes)

O escritor brasileiro Bernardo Carvalho diz que não “entende” nada de poesia mas quando recebeu “Monodrama”, livro de poesia do carioca Carlito Azevedo, ficou maravilhado. Mote para conversa sobre poetas do Rio. Por Isabel Coutinho

“A literatura melhora os países?”, perguntámos ao brasileiro Bernardo Carvalho no Correntes d’Escritas, o festival de escritores de expressão ibérica que decorreu na Póvoa de Varzim.

“É verdade. Você não acha que Portugal é melhor com Fernando Pessoa do que sem ele?”, contrapõe o autor de “Nove Noites” que foi considerado pelo jornal brasileiro “O Globo” como um dos melhores livros da década (na lista publicada no caderno “Prosa & Verso”, em dez obras, “Dois irmãos” de Milton Hatoum aparecia em primeiro lugar e o romance de Bernardo Carvalho em segundo).

“Que seria de Portugal sem Pessoa e sem Camões?”, escreveu, aliás, o ano passado Bernardo Carvalho na sua coluna no jornal “Brasil Económico”.
“A literatura melhora os países, mesmo quando é para contar suas derrotas e seus horrores e sobretudo quando conta suas derrotas e seus horrores”, acrescentava.

Para o escritor, que tem quase toda a sua obra publicada na editora portuguesa Livros Cotovia, “as cidades também só têm a ganhar com a prosa dos seus escritores e a lírica dos seus poetas”. E continuava: “Ninguém duvida que Buenos Aires seja melhor com Borges, Dublin seja melhor com Joyce e o Rio com Drummond seja melhor do que sem ele. Se eu dissesse o mesmo de um poeta como o Carlito Azevedo, talvez você torcesse o nariz. Mas seria por simples desconhecimento. O que é natural, já que ele ficou treze anos sem publicar nada.”

Pois “Monodrama”, o livro a que Bernardo de Carvalho se referia nesta crónica, acaba de ser editado em Portugal na Livros Cotovia. Tal como Bernardo Carvalho também Carlito Azevedo nasceu no Rio (4 de Julho de 1961). Pelo seu primeiro livro de poemas, “Collapsus linguae”, recebeu o Jabuti, um dos mais importantes prémios brasileiros. Publicou ainda “As banhistas” e “Sob a noite física” [em Portugal na Livros Cotovia, em 2001, ver edição do Ípsilon de 3 de Abril de 2009]. Carlito Azevedo é também editor da revista de poesia “Inimigo Rumor” e coordenador da “Ás de Colete”, colecção que reúne obras de poetas contemporâneos publicada pelas editoras brasileiras Cosac Naify e 7Letras. No Brasil editou, entre outros, Adília Lopes e divulgou a poesia de Ruy Belo.

Um estrondo

Este é um dos poemas de “Monodrama”: “Eu pergunto se/ você quer ir para/ casa “Sim”/ se está pensando/ em grandes espaços vazios/ “Sim” se tudo/ vai passar/ tudo vai/ ficar bem/ “Sim sim”/ se realmente/ se apaixonou/ se pensou em/ morrer “Sim”/ se eles cortaram/ os seus lindos/ cabelos.” Tal como Carlos Drummond de Andrade, seguindo a tradição da poesia carioca, Carlito parece falar de coisas muito simples nos seus poemas.

“O que é bonito no Carlito é que a sua poesia é discreta, parece que não é nada, mas de repente é um estrondo. A sua poesia tem muito a ver com o Brasil, com o Rio”, explica Bernardo Carvalho que acha o Rio um lugar “muito terrível”, embora acredite que a maioria das pessoas não terá a mesma opinião. Para o escritor, que vive em São Paulo por opção, o Rio é uma cidade “muito violenta, em que há algo estranho, uma cidade em que civilização deu errado”. Por isso considera ainda mais interessante que ali surjam poetas como Drummond ou Carlito Azevedo, que tem uma obra que nasceu “no meio daquele caos, no meio daquela coisa que a gente diz que é ‘escrota’ [podre].”

“O que é mais engraçado no Carlito é que ele é um sujeito muito culto, muito surpreendente, mas quando fala oralmente tem a língua do carioca, do malandro, do surfista. É sensacional que ‘um cara’ que fala daquele jeito, com aquela gíria e calão carioca, seja autor desse livro”, continua Bernardo Carvalho. Ou seja, que faça uma poesia que “combina o aparentemente simples com a ironia” sem recorrer ao insólito para fazer poética e ser original. A poesia de Azevedo é “uma poesia ao mesmo tempo discreta e incisiva”, fazendo surgir “do banal o mais terrível e o mais belo”.

Mais um exemplo: “A gente podia/ conversar mais vezes/ não amigos certamente/mas tampouco inimigos/ adorei aquela tarde/ no hotel do Cosme Velho/ o ponto mágico/do morro na janela”. “Monodrama” acaba com um poema que Bernardo Carvalho considera “deslumbrante” sobre a morte da mãe que acaba sendo comparada com a morte de Pasoloni.

“H.”, a mãe do poeta, tem Alzheimer e ele escreve: “Antes de me dar conta de que ela estava com mal de Alzheimer eu me irritava com minha mãe todas as noites me perguntar se meu pai já havia voltado para casa, e me obrigar assim a, todas as noites, durante não sei quantos meses, lhe explicar que ele já tinha morrido havia dez anos. E todas as vezes era como se recebesse a notícia pela primeira vez. Umas cem vezes lhe dei, ao anoitecer, com um contrafeito beijo de boa-noite, a notícia de que seu marido tinha morrido. Cem vezes viúva. (…)”.

Este poema final é “um dos mais lindos poemas” que Bernardo Carvalho já leu na vida. Ficou encantado com o filho que se inquieta ao dar-se conta de que não sabe se a mãe teve “uma morte boa ou uma morte má” e a imaginar, na sua fantasia, que a mãe se despede dele dizendo: “(…) nesse louco planeta que agora, para você, gira também sem mim.”

(Artigo publicado no suplemento ípsilon do Jornal PÚBLICO de 12 de Março de 2010)

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