“Was ist das?” pergunta o leitor que marcou presença em todas as sessões do festival literário. A 11.ª edição do Correntes d”Escritas terminou sábado e fomos saber o que afinal lá se passa .Por Isabel Coutinho
Alto e pára o baile. “Mas isto aqui é os académicos a falar para os analfabetos, é?” quase grita agarrado ao microfone o senhor que se levantou da plateia. É uma das presenças constantes nas Correntes d”Escritas, cuja 11.ª edição decorreu durante quatro dias no auditório da Póvoa de Varzim. Aparece em todas as sessões e em todas pede para falar. O moderador da conferência, que já sabe o que a casa gasta, tentava pedir-lhe que fizesse uma pergunta concreta. Não conseguiu.
Acorrentado: é assim que fica quem alguma vez coloca os pés nas Correntes d”Escritas. Quem diria que um encontro literário, o único que existe há 11 anos em Portugal, que nasceu de uma ideia simples de Francisco Guedes (que agora também organiza o LEV – Encontro de Literatura em Viagem, em Matosinhos) concretizada depois de uma conversa com o vereador da Cultura da Póvoa de Varzim, Luís Diamantino, iria deixar acorrentados (para toda a vida) aqueles que por aqui passam. Um festival literário onde nos podemos cruzar e até meter conversa com gigantes e anões (e acreditem, não se trata aqui só de uma metáfora literária).
Ano após ano, desde a primeira edição em 2000, dezenas de escritores de expressão ibérica juntam-se para conversar sobre literatura. Descobrem leitores que não sabiam ter e cativam novos: pessoas que, depois de os ouvirem falar ou apresentar as obras, se precipitam para a livraria improvisada no local onde se realizam as conferências. E aturam o tal senhor que se levantou da plateia que a todos alerta no espaço aberto às perguntas do público dizendo coisas mais ao menos assim: “Que isso da literatura está bem, mas os chineses estão a comprar os títulos do tesouro americano e eu quero saber o que vamos fazer para controlar a revolução amarela. E depois há os africanos que estão a vir para a Europa e daqui a 200 anos vamos ser todos mulatos e quem é que quer isso?! Was ist das? Sim, porque desconstruir o absurdo é muito bonito, mas…” E é melhor ficarmos por aqui.
Boquiabertos
Todos os escritores, sem excepção, venham de que local do mundo vierem, ficam perplexos quando começam a trocar e-mails com Francisco Guedes e Manuela Ribeiro, os co-organizadores do encontro. Muitos não querem aceitar o convite antes de saberem qual é o tema da mesa onde se espera que participem. Manuela Ribeiro vai consecutivamente adiando o momento da revelação. E eles, entretanto, aceitam o convite. Depois chegam por e-mail os temas, muitas vezes citações de poemas ou de textos de escritores. São quebra-cabeças e deixam os participantes boquiabertos: Escrevo para desiludir com mérito, ou Passo e fico, como o universo, ou O poeta é um predador… Esta última frase é de Agustina Bessa-Luís, a homenageada desta edição a quem a revista, publicada anualmente pelo festival, é dedicada.
“Sou um predador, eu sou um predador” está a dizer valter hugo mãe sentado no palco das Correntes d” Escritas. Calhou-lhe em sorte a mesa dedicada ao O poeta é um predador. E então o escritor conta que na sua vida já andou à caça de abelhas e pirilampos, que caçou as galinhas que escapavam do galinheiro e que teve um cágado que fugiu para as heras durante dois anos. Ao levantar a careca e olhar a plateia, o autor do romance A Máquina de Fazer Espanhóis, disse: “A falta de paciência também é desgraça que chegue. Eu queria ser mais paciente, mas dá-me aquela angústia e preciso de bulir e não há nada a fazer.”
Há gente espalhada pelo chão e em pé, nem um único lugar livre. Senhoras, que se vestiram como se fossem à missa para ir ouvir escritores, riem-se às gargalhadas; o mesmo acontece a jovens com ar de terem acabado de sair da frente de um computador na Casa da Juventude ali ao lado.
“Sou um predador assim destes, à caça de amigos por mais esquisitos que os amigos possam ser, a mim já nada me parece esquisito, já cá vi cada coisa. Uma vez uma senhora tinha um buraco tremendo na parte de trás da cabeça porque levara com uma bala e a bala, se calhar mais esperta do que as outras, ao invés de a matar fez-lhe um penteado novo e eu achei que era lindo que uma bala fosse mais esperta do que as outras, e a mulher ria-se, e rimo-nos muito os dois juntos.” Mais gargalhadas.
“Eu sou um predador disto, que é sempre o mesmo. O outro lado das coisas, sem o qual a incompletude se acentua. Se for poesia, então sou poeta. Não sei ser outra coisa ou ainda não me ensinaram”, arremata e naquela sala apinhada faz-se silêncio porque se está a falar de poesia e a poesia, por estes lados, é tida em muito boa conta.
15 quilates de emoção
Quase todas as noites, no hotel da Póvoa de Varzim (que vai mudando de nome mas continua sempre igual e nunca nos desaponta) onde ficam alojados os escritores, editores e jornalistas, há sessões de poesia. Desconhecidos que sonham ser conhecidos misturam-se com conhecidos que tentam não ser reconhecidos. E há apresentações de dez livros ao mesmo tempo e todos acham que os outros não cumpriram o tempo (mínimo) de apresentação.
Nesta edição todos os louros foram para o escritor veterano Manuel da Silva Ramos (aquele que passou um ano a enviar caixões para casa do crítico literário João Gaspar Simões que tinha feito uma crítica negativa a um dos seus livros). Na sessão dedicada ao tema Literatura: o esforço inédito das palavras, Manuel da Silva Ramos colocou na cabeça um capacete amarelo e na testa uma lanterna e transfigurou-se em prospector que no outro dia apanhou uma palavra de 15 quilates de emoção. E ele que salta “da mina para a vida e pronto” foi lendo um texto e levou a plateia a passear numa mina de galeria em galeria: “É preciso ter muita imaginação, porque há gente que diz que a mina não existe.” Depois Manuel apresentou o seu mais recente romance, Três Vidas ao Espelho, e até cantou.
Quem também cantou e declamou pela noite fora foi o escritor argentino Pablo Ramos (autor de A Origem da Tristeza e que noutras vidas até chegou a dirigir um bordel), agarrado ao violão. Ouviu-se tango, Inês Pedrosa arriscou o fado de Coimbra e não faltou Grândola, Vila Morena. Corria o boato de que o escritor João Tordo não dormia há três dias e – imaginem – a escritora Mónica Marques veio do Rio de Janeiro para a festa nocturna do lançamento de O Terceiro Reich de Roberto Bolaño no Bar da Praia. Ao som do DJ Irmão Lúcia, os escritores misturaram-se com os típicos jovens poveiros que, quando começaram a ouvir Francisco José Viegas a falar em cima do palco do karaoke, soltaram vários: “Que merda é esta dos livros a esta hora?”
E a hora das conferências no Correntes d”Escritas por vezes convida ao sono. Há escritores que precisam de dormir a sesta. Há moderadores que quase adormecem enquanto moderam e há quem durma e ressone (alto) na plateia. E isso leva-nos a uma das histórias que o escritor J.J. Armas Marcelo (autor de A Ordem do Tigre), que nasceu em Las Palmas de Gran Canaria, contou nestas Correntes d”Escritas, um festival literário onde se acabam e começam muitos casamentos.
O escritor Prémio Nobel da Literatura 1989 Camilo José Cela estava um dia sentado numa das sessões plenárias do Senado quando adormeceu. Foi acordado por um outro senador, professor de Latim, que lhe chamou a atenção: “Señor Cela, está usted durmiendo?” Cela despertou e respondeu-lhe: “No, estoy dormido.” E o professor acrescentou: “Es lo mismo.” E Cela não se calou: “No. No es lo mismo estar jodiendo y estar jodido.”
O PÚBLICO esteve no Correntes d”Escritas a convite da organização.
(Reportagem publicada no caderno P2 do PÚBLICO de 1 de Março de 2010)
grande correnteza…
foi quase estar lá…
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