A implicação física de um cineasta na construção de um arquivo da memória humana, arrastando consigo o espectador. É o que pode apaziguar: ali estamos todos nós. Dois filmes do chinês Wang Bing no DocLisboa, Traces e Father and Sons.
Talvez seja um auto-retrato – uma forma violenta de auto-retrato. Da palavra – auto-retrato – talvez se desprenda um odor de narcisismo, coisa que está ausente do cinema de Wang Bing.
Reformulando, Traces, a curta-metragem do cineasta chinês que é exibida dia 26 no Cinema Ideal (21h45), é uma espécie de auto-retrato da obra: a implicação física de um cineasta na construção de um arquivo da memória, arrastando consigo o espectador para essa aventura que tem dimensão épica mas é, afinal, tão humana. Esse é um pacto que não é negociável. Voltamos a reformular: é mesmo um auto-retrato.
As imagens foram captadas em 2005, no local em que Wang Bing rodava A Fossa, a sua (até hoje) única experiência de ficção – que era, na verdade, um filme nada diferente dos seus documentários. Baseava-se nas histórias verídicas dos que morreram de fome em campos de trabalho do Noroeste da China, entre 1959 e 1960. É essa a matéria de Traces: terra, dunas, ossos, vestígios, gritos na forma de inscrições em grutas – “Liberdade”. E um cineasta a caminhar atrás disso.
Em 1957, no seguimento da campanha contra os anti-revolucionários lançada pelo partido, o governo local da província de Gansu enviou três mil chineses para campos de reeducação, Mingshui e Jiabiangon. Em cada um deles, cerca de mil pessoas morreram de fome num ano; sobreviveram cerca de 400. Esse é o tipo de informação, background social e geográfico, que Wang Bing só desvenda no final dos filmes. Para implicar o espectador, também fisicamente, na responsabilidade pelo trabalho de memória, para que ele não se proteja com a distância – o que acontece “aos outros”. O cinema de Wang Bing dá conta de todos nós, isso talvez nos possa apaziguar.
Volta a ser assim em Father and Sons (dia 23, 24h, Ideal), duríssimo, surdo, estrebuchar de uma família que não consegue erigir, dar forma, aos seus laços. Coisa inapelavelmente imóvel – câmara fixa no interior de um casebre de um pai operário, que migrou no interior da China à procura de trabalho, e dos seus filhos que se lhe juntaram. O cinema de Wang submete-se aos ritmos e gestos de quem filma, por isso em ‘Til Madness do us Part (2013), com as suas quatro horas de duração no interior de um hospital psiquiátrico, a câmara não tinha outra hipótese senão correr ofegante, como num ginásio, atrás de um internado no hospital, figura de irreprimível energia.
No primeiro trimestre de 2015, o Cinema Ideal, em Lisboa, programará uma retrospectiva integral de um cineasta – que se auto-produz, e cuja obra é invisível no seu país (a não ser através do DVD pirata) – para acompanhar a estreia comercial de A Fossa e de Três Irmãs.
A entrevista, aqui