A vida, feroz e lírica, foi agarrada pelo júri da competição de Veneza. Mais importante do que os pombos embalsamados do Leão de Ouro.
“A Pigeon Sat on a Branch Reflecting On Existence” de Roy Andersson é o pombo embalsamado – Leão de Ouro da 71ª edição do Festival de Veneza, atribuído sábado à noite do Lido. A existência está no resto do palmarés.
Sem ironia: belo conjunto de prémios aquele que foi desenhado pelo júri presidido por Alexander Desplat se tivermos em conta o que pode acontecer durante a soma dos afectos ou empatias de nove pessoas para se chegar a uma lista – os outros jurados eram os actores Joan Chen e Tim Roth, os realizadores Philip Groning, Jessica Hausner, Elia Suleiman, Carlo Verdone, a escritora Jhumpa Lahiri e a figurinista Sandy Powell. Se tivermos em conta que de um filme coroado com o prémio máximo alguns esperam que “signifique” qualquer coisa, que seja “sobre”, que dele se destaque um efeito de autoridade.
A Pigeon Sat on a Branch Reflecting On Existence, encerramento, depois de Songs from the Second Floor e You, the Living, de uma trilogia do cineasta sobre o que é “ser um ser humano” – anuncia o sueco Roy Andersson no início – é esse tipo de coisa. É um filme que quer “representar”: o sofrimento humano, o património de violência e de barbárie, a culpa do mundo… Fá-lo através de planos fixos, uma série de mundos que são hermeticamente selados apesar de haver, em fil rouge, a odisseia de uma dupla trágico-comico de vendedores ambulantes – dentes de vampiro é a novidade deles.
É uma versão congelada do palhaço, numa edição do festival que teve propostas vibrantes de clowns em filmes menos autoritários: o Michel Houellebecq ciclista de Near Death Experience, de Gustave Kervern e Benoit Delépine (secção Horizontes), ou o Benoît Poelvoorde chaplinesco de Le Rançom de la Gloire, de Xavier Beauvois (concurso). Os sketches de Andersson – ele não consegue afastar o fantasma dos Monthy Python, em encontro com Bergman – reiteram o mesmo. Chega a parecer que o pessimismo é um meio para chegar a um fim cómico. A meticulosa mecânica formalista parece ser o movimento, a moral – em “quadros” como o de um Holocausto humano isso incomoda. “Académico”, chamaram a A Pigeon Sat on a Branch Reflecting On Existence alguns; para outros foi a consagração de um realizador “de culto”. É as duas coisas.
É como se A Pigeon Sat on a Branch Reflecting On Existence não progredisse desde aquele quadro inicial em que um casal observa pássaros embalsamados no museu: fica-se à espera da possibilidade de um contraponto, e nunca acontece, é um one man show do quadro.
O movimento em que os olhares se encontram, o do filme e o do espectador, faz o silêncio de The Look of Silence, de Joshua Oppenheimer (Grande Prémio do Júri). É o momento aguardado pelo desamparo que causava The Act of Killing (2012). Não é, por isso, uma sequela do filme anterior. Isso seria qualquer coisa que vinha “depois de…”, quando o cruzamento com o olhar das vítimas dos esquadrões da morte que assassinaram um milhão de indonésios nos anos 1960, e a experiência desse silêncio, era um gesto moral necessário depois da histerização selvagem dos actos assassinos que os próprios reencenavam, como action heroes, em The Act of Killing – filme que corria o risco de matar a vítima uma outra vez sem The Look of Silence.
É aqui que o júri da 71ª edição se mostrou um conjunto de tipos em movimento: The Postman’s White Nights, do russo Andrei Konchalovski, foi o Leão de Prata para Melhor Realizador, Sivas, do turco Kaan Mujdeci (na foto), foi o Prémio Especial do Júri. Não interessa a hierarquia das distinções, interessa que os objectos foram identificados e que há um mundo que neles se revela. Sem quererem saber ou explicar qual o momento em que o documentário passa a ser ficção ou em que a ficção se alimenta do documentário, sem se importarem com essa demarcação, interessam-se pelo pacto com as pessoas que filmam: não-actores que sem o saberem interpretam-se a si próprios.
Kaan Mujdeci deixa-se levar pelos círculos concêntricos que um miúdo organiza para se afirmar e ao seu cão de combate na arena social – ele é que é o animal feroz de um filme que, devido ao realismo das sequências de combate com animais, perturbou o refúgio de conforto que alguns procuram nas salas (mas é bom quando um filme violenta). Tão feroz quanto ele é Romain Paul de Le Dernier Coup de Marteau (prémio Marcello Mastroianni para um estreante): um adolescente que encontra para si um papel no melodrama familiar destruído e na luta de classes, progredindo da roulotte onde vive com a mãe doente para uma varanda teatral com vista triunfante sobre a cidade – a linhagem dos jovens obsessivos dos Dardenne ou do Jean-Pierre Léaud inaugural de Os 400 Golpes de Truffaut.
E depois houve The Postman’s White Nights, o mais belo filme de todos os da competição, com o suplemento de beleza de ter chegado no último dia, quando menos o viram e quando ninguém estaria à espera desta possibilidade de panteísmo renascido das cinzas, de vida, depois do fim do cinema épico, depois do “romantismo socialista”, com uma galeria de personagens – habitantes de uma aldeia perdida na Rússia que, mais uma vez “sem o saberem”, se interpretam a si próprios – de estirpe orgulhosamente clássica.
Estas palavras de Philip Gröning, um dos jurados (é realizador de O Grande Silêncio), depois do anúncio do palmarés, interessam: “O cinema está a mudar, e os prémios reflectem essa mudança”.
O palmarés de Veneza não ficou embalsamado.