27 anos depois da sua estreia no cinema, com Uma Rapariga no Verão, Vítor Gonçalves regressa do mundo dos mortos. Não é liberdade poética. Se o é, ele concorda que é a forma mais justa para se dizer sobre o que se passou. A Vida Invisível, segunda longa-metragem, passa sábado no Festival de Roterdão.
No momento de rodar o primeiro plano de A Vida Invisível, Vítor Gonçalves teve a “absoluta sensação” de que filmara na véspera. Na realidade, a véspera para ele, a sua longa-metragem anterior, aconteceu há 27 anos, foi Uma Rapariga no Verão (1986): uma estreia, em anos que foram também de primeira vez para Pedro Costa (O Sangue, 1989), Teresa Villaverde (A Idade Maior, 1989), o anúncio de uma geração. Mas perante “a força desse sentimento” de que um realizador sempre esteve “presente” ali, a chamada realidade é apenas um conjunto de contingências. Não consegue medir forças com a “presença”. Não há verdade mais justa, então, do que apelar ao “misterioso” ou ao “inexplicável”, concede o realizador, 62 anos, para falar da sua vida com os filmes. Para dar conta do que se passou nessas mais de duas décadas depois de um filme muito falado mas pouco visto, Uma Rapariga no Verão – nunca estreado comercialmente, o que favoreceu a mística do “buraco negro”.
“É como se houvesse qualquer coisa de misterioso e de assustador no design da minha vida no cinema. Talvez falar desse ponto de vista, do ponto de vista do fantástico, seja uma forma mais profunda para dizer porque é que estive tanto tempo sem filmar. Para dizer o que fiz com o tempo da minha própria vida. Isso é o Hugo”, o nome da personagem de A Vida Invisível, com que Gonçalves anda neste momento pelo circuito dos festivais: esteve no Festival de Cinema de Roma, está a partir de sábado no Festival de Roterdão. Hugo (Filipe Duarte) prefere as sombras à luz, gosta mais dos mortos do que da companhia dos vivos – é o que lhe diz Adriana/Maria João Pinho, uma vida que Hugo deixou escapar. Foi esse o princípio do projecto: “Pensar nos mortos-vivos, nas pessoas que estão objectivamente vivas mas que não se sentem vivas – como se a vida não estivesse ao seu alcance, como se sentirem-se vivas não estivesse ao seu alcance. É uma sensação que temos tantas vezes na vida…”
A relação de Hugo com os espaços que respira – e já são os espaços que respiram o tempo de Hugo – é das coisas mais misteriosas na respiração de A Vida Invisível. Aí o filme revela-se: sim, é verdade, Vítor Gonçalves apenas não filmava desde a véspera – é mais misterioso do que dizer que em 27 anos um cineasta não perdeu a mão.
“Era importante trabalhar os espaços ao longo do filme para sentirmos que eles existem por si e que uma personagem tem uma relação particularmente sensível com eles – Hugo deseja ficar sozinho, afastado das pessoas vivas, e é nesse momento, na sua solidão, que vive à sua maneira.” Ao filmar cenas que aparentemente são comezinhas, entradas em casa, o sentar-se numa sala, Vítor Gonçalves configurou o seu “horror ao naturalismo”, à concepção dos espaços como décor para a verosimilhança de uma personagem ou de uma acção. Quando se chega ao como é que fez?, prefere apelar aos fantasmas. “Numa primeira instância, interessa-me a minha relação com o espaço, não estou a pensar em narrativa alguma – não preciso de um corredor porque o herói vai passar por um corredor. É isso que faz com que um espaço adquira uma presença e uma realidade. Só no segundo momento é que pensei no actor Filipe Duarte naquele espaço. Mas não sou senhor daquilo que sinto. Fica uma espécie de enigma com o qual vou trabalhando. Há planos em A Vida Invisível que são planos de um filme secreto, de um outro filme, que eu rodei para além daquele que estava a rodar, e que só depois ao serem integrados adquiriram sentido. Aconteceu muitas vezes a cena estar a ser feita num determinado sítio e eu pegar na câmara para filmar, por exemplo, árvores noutro sítio. É como se estivesse a filmar com o sentido em movimento, filmo nesse território.”
É decisivo dizer que tudo se passa, maioritariamente, nos corredores e salas de ministérios no Terreiro do Paço, em Lisboa. É aí que trabalha o funcionário público Hugo, e é aí que sabe que o seu superior, António (João Perry), está a morrer. António é uma figura tutelar, espécie de autoridade paterna. Há uma sequência que diz tudo sobre o que os une e como os une: António vai descendo escadas em caracol e vai deixando cair papéis, como se fosse o seu legado, nessa descida atraindo Hugo, cujo impulso deveria ser o de os apanhar. (E o espectador desce com eles, atraído pelo negrume de um filme que tacteia o gótico, o medo.) Impressionante é recordar Uma Rapariga no Verão – ou forçar essa memória, (re)descobrindo esse filme e ir ao encontro dos fantasmas que a música de Andrew Poppy anunciava desde o genérico inicial e que surpreendia pela insistência, por parecer deslocada num frágil filme “sobre a adolescência”.
Também aí havia alguém, uma rapariga, a estrebuchar perante o património de sonhos e quimeras dos “pais”: a severidade febril, monstruosa, deles ameaçava sufocá-la. Nesse filme João Perry fazia um “filho”, mas, de carabina na mão e pantera enjaulada, tinha sido definitivamente engolido pelas fantasias coloniais do pai, não lhe restando outra coisa senão a loucura; era um pedaço de Jacques Tourneur (“nos meus tempos de escola eu era um obcecado pela série B”, confirma o realizador) cruzado com o que hoje pode ser delirante ler como um prenúncio do Tabu de Miguel Gomes. Estava-se em 1986, e Vítor Gonçalves (não é segredo algum, “um filho”, de Vasco Gonçalves, primeiro-ministro durante o PREC) escolhia olhar para a História como a sua protagonista: vendo algo de distorcido, uma febre, mas qualquer coisa de que ainda sobrava um movimento. Em A Vida Invisível, o político e o social são vestígios, como aquilo que se encontra numa exumação – uma coincidência oportuna fez com que a rodagem decorresse na altura das obras de requalificação do Terreiro do Paço, em 2010, o que permitiu ao realizador pontuar a aventura interior de Hugo num décor de representação política esventrado. É a vida interior num cenário morto, num cenário de mortos. Isto para dizer, finalmente, que se estes dois filmes estão separados por 27 anos, Uma Rapariga no Verão e A Vida Invisível falam um com o outro e um sobre o outro como se um deles tivesse sido feito na véspera, o outro no dia seguinte.
“A escola obrigou-me a pensar continuamente o cinema. Acho que o que se tornou mais importante para mim nos últimos anos foi eu ter encontrado uma forma de dar aulas que permitisse uma reflexão sobre o cinema” – é professor na Escola Superior de Cinema. “Passei a privilegiar uma relação muito próxima com os filmes, com os planos, com o que está a acontecer. É uma relação com os alunos mais viva, mais intensa, por oposição à ideia clássica de uma matéria que está a ser transmitida. Porque há certos problemas que não conseguimos pensar sozinhos. Fazer um filme é também pensar o cinema mas de uma forma que não é explicável. E é essa vivência que é insubstituível. Se não tivesse feito filmes, continuaria a reflectir sobre cinema. Mas o que é extraordinário é a vivência daquilo que não somos capazes de falar.”
Hugo vive em A Vida Invisível. E Vítor Gonçalves é um cineasta para todas as estações.