Marcel Ophuls refugiou o seu medo da solidão da memória e da página em branco num filme: Un Voyageur. O filme interrompe uma ausência de 19 anos de um interrogador agressivo e simultaneamente terno.
Foi a última coisa que o amigo François Truffaut lhe disse, quando fechava a porta de casa: “Marcel, por favor escreva as suas memórias.”
Truffaut morreria logo a seguir, aos 54 anos, a idade perigosa que também levou Ernst Lubitsch e Max Ophuls, pai deste Marcel que seguiu o conselho de Truffaut e acaba de apresentar em Cannes as suas memórias. Em filme, não em livro. Porque foi preciso “uma fuga em frente”.
“A razão por que este filme existe é o medo da página em branco. Ainda tenho terror disso, há escritores que se suicidam por causa disso. Porque a escrita é um trabalho solitário. No cinema, pelo contrario, há gente que esta connosco para nos ajudar. Por isso é um refugio: pensei que se filmasse seria mais fácil. Este filme vem desse medo de estar sozinho. Mas é um refúgio temporário”, disse o cineasta na sexta-feira, quando apresentou Le Voyageur no festival.
Marcel Ophuls há muito que ultrapassou a idade perigosa, tem 85 anos. E Un Voyageur é o filme que interrompe uma ausência de 19 anos de um interrogador, agressivo e simultaneamente terno, inquisidor denso e simultaneamente dotado da leveza de um bailado de Fred Astaire, da memória do século XX.
Foi assim em documentários monumentais como Le Chagrin et la Pitié (1969, que pôs em causa o mito da França resistente à ocupação), The Memory of Justice (1973-1976, cinco horas sobre o processo de Nuremberga, filme que fez, disse, para acabar com o relativismo sobre o Holocausto em que os alemães se refugiavam justificando-se com os crimes de Estaline e a presença americana no Vietname) ou Hotel Terminus: Klaus Barbie, sa vie et son temps (1989, que, como o título indica, não é só um filme sobre um carrasco nazi, é um filme sobre um tempo, e nesse tempo os carrascos nazis estavam espalhados pelo mundo disfarçados, protegidos por novas causas).
Acredita (e nisso tem a concordância do amigo Frederick Wiseman) que o documentário é também ficção, porque é escolha e ponto de vista, e não acredita na “objectividade” do jornalismo. Isso, na sua opinião, é uma desculpa para a neutralidade, coisa a que associa os suíços e os bolos com creme que comem. Defende o jornalismo e o documentarismo implicados, de autor, a única forma de impedir aquilo que fazemos com a nossa memória: a reconciliação. Que deve ser impedida a todo o custo. E Ophuls – disse-o em 2009 ao PÚBLICO – acha que, sendo judeu, tem o que é necessário para o trabalho. Isto é, ser “inquisidor em relação a um agressor”.
É céptico, é pessimista (como o pai, o “genial” Max). Mas também tem sido divertido e poético, para além de agreste, ao interrogar a História através da vida privada e quotidiana. Também a sua se imiscui nestas viagens. Em The Memory of Justice, por exemplo, a sua mulher, Regine, era convocada para olhar para os seus esqueletos no armário: o pai fora nazi. Ao obrigá-la a este confronto, Ophuls estendia um espelho a toda uma geração de alemães.
A intimidade de Marcel também passa nos seus filmes pela escolha, muitas vezes surpreendente e tintada tanto com afecto como com ironia e crueldade, de clips de filmes ou de excertos de canções – por exemplo, as canções de Maurice Chevalier ao longo de todo Le Chagrin et la Pitié, até ao momento em que vemos e ouvimos Maurice a negar ao público americano que alguma vez tenha cantado para os alemães…
É com Chevalier a cantar que começa Un Voyageur, logo a seguir a um plano de Marcel hoje, num café de Paris, a perguntar aos turistas se gostam dos franceses, se gostam da França. O que está logo em causa nesses segundos, a amplitude desta pergunta, só fará sentido pleno para quem conhece a obra e o método do cineasta. Outro momento significativo: ao falar da sua infância na Alemanha, conta que o pai tinha um gosto especial por Mercedes descapotáveis, só guiava descapotáveis. A imagem que “ilustra” este pedaço de memória nada tem a ver, afinal, com ilustração porque é memória de Marcel: Hitler a desfilar, em parada, no seu descapotável.
É essa a natureza das revisitações feitas em Un Voyageur a momentos de uma vida, da Alemanha a Hollywood, passando por Paris, de uma obra e das imagens que as marcaram: servir como peça de companhia para o trabalho de um cineasta que se tem medo da página branco, tem maior horror à memória que se branqueia.