Um filme que palpita sempre que se aproxima da intimidade e das matérias que convoca — como o actor Mads Mikkelsen
Christian, o filho de A Festa, de Thomas Vinterberg (1998), aparecia no filme como quem entrava num western. Vinha de longe, “anjo vingador”, para acertar contas com o que a família lhe fizera.
À mesa de uma festa de aniversário, em “duelos” intervalados por um intermezzo pianissimo, procedia ao jogo de massacre: “matar o pai” que o violara, e à irmã gémea que entretanto se suicidara, ao longo da infância.
O Lucas de A Caça é também um desses homens do cinema de Vinterberg: foi desapossado pelo grupo.
O pai diz a Christian, em A Festa, que (lhe) fez o que fez porque era isso a única coisa que ele, Christian, sabia fazer. Condenava-o à infância. Fixava-o no tempo. Ele nunca mais pôde crescer para estar à altura daqueles rituais com que os civilizados explodem em violência.
Lucas, professor num jardim de infância em A Caça, tem 42 anos, vive sozinho numa casa, está em litígio com a ex-mulher e só pode ver o filho ao fim-de-semana (o filho tem pena dele por isso). As crianças tratam-no como o bom gigante que é — e é o corpo de Mads Mikkelsen. É como se fosse uma delas. O que faz de Lucas homem-criança, figura em perda, emasculada. Quando Klara, a menina, se lembra de dizer que viu a “pilinha” de Lucas a apontar para cima e a mentira se espalha pela cidade, isso apenas explicita de forma brutal uma situação que já era de solidão. Na caça às bruxas que se desencadeia a seguir, Lucas, tal como Christian, vai ser “violado”. Lá voltamos a ter, como num western, o homem sozinho na paisagem.
Entre A Festa e A Caça passaram 14 anos e nada de relevante, cinematograficamente falando, veio de Thomas Vinterberg. Houve inclusivamente uma experiência americana, O Amor é Tudo (2003), com Joaquin Phoenix e Claire Danes, e não era de facto nada. O cineasta tem dito que entre 1998 e 2012, fundamentalmente, andou a tactear: não sabendo lidar, profissional e pessoalmente, com o que lhe acontecera, com a aclamação que rodeara o filme que estampara antes do genérico o certificado do Dogma 95 – o conjunto de preceitos puritanos e autopunitivos com que Lars von Trier, que chefiava o bando, & Cia. anunciaram a purificação. Foi como se, tendo irrompido com um pico (A Festa é, para alguns, o melhor do Dogma 95 e até Lars deve achar isso porque o repetiu na primeira parte de Melancolia, em 2011), Vinterberg tivesse acelerado o fim da festa. Ficou a expiar a fama de wonder boy — numa entrevista ao diário britânico Guardian assumia que por essas alturas o Dogma 95 já era só estilo.
Há algo de regresso, então — à família, ao grupo, como habitat de predação. E de ajuste de contas — para saber onde é que se está enquanto cineasta. Está num sítio diferente.
Na altura do Dogma, e por causa do Dogma, o seu cinema tomava parte activa no roleplaying de contornos sadomasoquistas (para sermos gongóricos: é como se A Festa ambicionasse fazer o remake de Fanny e Alexander, de Bergman, versão S&M). Será interessante rever esses filmes para perceber se, descontando a operação de marketing que se intrometeu na purificação, sobrou, como sobra em A Festa, uma intensa energia lúdica. E foi um pagode a patifaria: família em jogo de massacre, criados a presenciarem a cena, a câmara a atiçar o fogo e a atirar-lhes com os planos para melhor os queimar vivos… Vinterberg tanto assustava as personagens como um fantasma como se transfigurava em ghostbuster e castrava os devaneios. Em A Caça ele despe o latex mas calça luvas: mantendo-se a pulsão autodestrutiva (sobretudo) dos seus homens, trabalha com delicadeza o risco de arrombamento — é curioso que o filme tenha estreado em Cannes no ano de Amor, de Michael Haneke, filme que está sempre a negociar a sua intromissão na intimidade das personagens.
É verdade que nada nos mostra de novo (nada que Lang, Peckinpah, Wyler, ou… ou… não tivessem mostrado) sobre a dinâmica dos grupos, sobre a forma como uma mentira passa a constituir a (nova) verdade de uma identidade ou sobre a forma como na mais civilizada das comunidades pode germinar o medo que dá origem à intolerância e que se estatela no fascismo.
Mas há coisas decisivas. Com material que podia fechar-se numa ilustração “casos da vida”, Vinterberg trabalha contra um programa de “exemplaridade”. Meditação outonal (A Festa tinha energia de Verão) que não deixa ilusões sobre a derrota social de Lucas, personagem mais ansiosa pelo compromisso do que Christian, agita-se, palpita, acende-se sempre que se aproxima da intimidade. Como se reagisse organicamente a um “fenómeno”. Uma dessas matérias inexplicáveis de luz e de sombras é Mads Mikkelsen.
como diria Myrtle Snow
“maaaaaaaad about The Hunt”
melhor filme de 2013 DE LONGE
Pingback: Beyoncé Documentary Special Life Is But a Dream – Trailer Oficial LEGENDADO | Live Trends