A carroça fantasma

Em tom de fantasmagoria, o que nunca abandonará Django Libertado, cabe ao europeu Christoph Waltz o papel de agente revelador de fantasmas americanos. Que esse papel seja desempenhado por quem no filme anterior de Tarantino caçava judeus, tem consequências. Política de actor.

 Com a sua titubeante carroça onde ainda abana um dente em tamanho maior do que a vida, Dr. King Schultz é o mentor do escravo Django. Libertou-o, treina-o para o ajudar na sua nova actividade: o alemão dentista (Christoph Waltz) é um caçador de prémios no Oeste americano, anda à procura de white trash para enviar essas encomendas aos anjinhos, e precisa de Django (Jamie Foxx) para identificar os malfeitores que se disfarçam numa plantação sulista.

Em contrapartida, promete, ajudará Django a resgatar a sua amada, Broomhilda (Kerry Washington), escrava num inferno do Mississipi que é a plantação de Calvin Candie (Leonardo diCaprio, como há muito tempo não o víamos), onde se adivinham incestos e todas as luxúrias de um southern gothic extremado. Onde se mata.

Schultz, que explicará ao escravo como no nome Broomhilda ecoam lendas e mitos alemães (assim investindo-o de um destino: ele pode vir a ser um Ziegfried negro, diz-lhe), depara com Django à noite: o caçador de prémios a conduzir a sua carroça (quase) fantasma, o escravo ainda não libertado numa via-sacra (ainda) agrilhoada – e coreografada como nas sequências dos trabalhadores-escravos de Metropolis, de Fritz Lang.

Em tom de fantasmagoria, o que nunca abandonará Django Libertado, cabe ao europeu Schultz o papel de agente revelador dos fantasmas americanos: procura esclavagistas “vivos ou mortos”, quando a matéria deste filme está morta e ainda está viva na sociedade americana, racismo, escravatura, Norte, Sul… Que esse papel de condutor da carroça de fantasmas seja desempenhado por Cristoph Waltz, o actor austríaco que no filme anterior de Tarantino, Sacanas sem Lei (2009), se chamou Hans Landa e caçava judeus, tem consequências que Tarantino, obviamente, procurou.

A personagem foi escrita para Waltz. Disse o actor ao Los Angeles Times: “Foi mesmo como [se a personagem] tivesse algo a ver comigo. Comigo como pessoa. Já interpretei personagens que foram escritas para mim, com o actor Christoph no pensamento. Quentin escreveu com a pessoa Christoph no pensamento. Chegou tão perto de mim e de forma tão imediata. É também assim que Quentin vê a pessoa Christoph. Nesse aspecto, o seu ponto de vista é mais singular e abre possibilidades de que eu talvez não me tivesse dado conta.” (Já agora: Tarantino considera que Waltz e Samuel L. Jackson são os actores que melhor dizem os seus diálogos).

Isso talvez contamine algumas das cenas de Schultz, a sua cultura poliglota, a elegância teatral do discurso e dos golpes, com um efeito de redundância que não existia em Hans Landa. Mas a contaminação mais decisiva é a de um caçador de judeus ser a mesma personagem – o mesmo sentido prático, por exemplo – que um caçador de esclavagistas: como se a presença da persona amoral de Waltz do lado dos “bons” fosse aqui apenas contingência. Dessa forma, através de Waltz, Tarantino faz o espectador aproximar a escravatura, na História americana, do Holocausto nazi da História europeia. E assim Tarantino introduz insegurança, incerteza, culpa (tanto maior se esse espectador for americano, é certo, porque será sempre uma experiência de catarse ver Django Libertado numa sala dos EUA).

Era mais inócuo navegar pela “História alternativa” que Tarantino construía com os seus inglorious basterds, era fácil participar no divertimento porque a “História oficial” e as suas vítimas são nosso património; tem mais consequências fazê-lo aqui porque nos comprometemos com um statement que parece ser o gesto de Django Libertado. Este é o “filme de denúncia” que Tarantino (não) é capaz de fazer: escondido, disfarçado sob as roupagens da charada ou da opereta (infernal,  claro). É, talvez por isso, o mais linear dos seus filmes. Se existe em cada Tarantino – Kill Bill, Sacanas sem Lei…- a possibilidade e o desejo de ser vários ao mesmo tempo, com um dispositivo formal permanentemente em consonância, em estado de bulimia e de guerra, Django Libertado aparentemente contém apenas um filme. Em favor do statement, persegue do princípio ao fim os mesmos motivos, os mesmos tons. Alguém, na imprensa americana, escreveu que se tratava do “mais maduro” dos filmes do norte-americano.

 

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