Lá em baixo, na cave onde a Áustria fecha os seus fantasmas

Um país refugiado atrás de “belas paisagens” – para onde varreu a sua História – e um filme que abre a porta da cave. Mais do que história de pedofilia, o retrato pungente, patético, de um desejo de invisibilidade: Michael, de Markus Schleinzer, que emtrevistei este ano. Para mim, um dos filmes de 2012 e uma “rima” na semana em que Michael Haneke arromba as portas de um apartamento em Paris, no seu Amour

O Verão espreguiça-se numa antiga capital de império. Viena é uma cidade lenta, adormecida por um encantamento passado – como uma promessa de invisibilidade, um esquecimento induzido na memória para melhor se imaginarem lagos, bosques e montanhas nevadas. Mas a espaços a temperatura pode descer, cortante, com o frio que sobe das caves. Ou com as bofetadas atiradas por jovens e não tão jovens zangados, escritores como Elfriede Jelinek ou Thomas Bernhard, realizadores como Ulrich Seidl, Michael Haneke ou Markus Schleinzer. Este antigo director de casting de filmes dos dois anteriores cineastas viu-se subitamente atirado para um festim nu – Cannes 2011 – com um filme de que não era suposto falar-se muito antes da exibição no festival, de que se conheciam, aliás, poucas fotografias e em volta do qual, sobretudo, estava pronta a ser pendurada a gabardine do “filme-escândalo”: era Michael, “filme sobre um pedófilo”.

Sem currículo e sem fotos para entregar à imprensa, Markus, 41 anos, passou do seu jardim em Viena, onde regava os tomateiros (foi apanhado nesses preparos, de cuecas, por um fotógrafo que quis mostrar quem é que afinal tinha sido atirado para o meio de Almodóvar, Alain Cavalier, Nuri Bilge Ceylan, os Dardenne, Kaurismäki, Terrence Malick, Moretti ou Lars von Trier), a exemplar público de uma escola da crueldade, o “cinema austríaco”. Rodeado de gente que – é a memória de Markus dessa edição do festival – evitava escrever sobre Michael, como se isso implicasse comprometer-se com o tal “filme sobre um pedófilo”, e se escudava nas entrevistas. Assim vinha tudo entre aspas, era o realizador que dizia o que dizia, não era o jornalista/crítico que se comprometia. Markus deve ter dado por dia cem entrevistas. Algumas terminaram em confronto verbal.
“Posso dizer o que é “tipicamente italiano” ou “inglês”, mas preciso de pensar muito antes de poder dizer o que é “cinema austríaco”… não sei. Sei que esta forma de vivermos e fazermos cultura tem a ver com a nossa história”, começa por dizer – e Viena está quente.
“Depois da Primeira Guerra Mundial tornámo-nos um país pequeno. Depois da Segunda Guerra pretendemos ter sido as vítimas e não os autores dos crimes, mas quando passaram 50 anos sobre o Holocausto ainda estávamos a devolver os quadros que roubáramos. Passámos a ser conhecidos pelas nossas belas paisagens. Mas tínhamos nazis no Governo nos anos 80. Não éramos, afinal, um nice country. Era preciso esbofetear a sociedade. A arte passa bem sem os embrulhos: não tenho de ser bom para os espectadores. Foi difícil para a Áustria enfrentar o que fez. Os alemães foram sempre vistos como os maus. Nós, pelo contrário, tornámo-nos o país do turismo. Sobretudo: não olhar para debaixo do tapete. Por isso a nossa cultura teve de se desenvolver de outra maneira. Por isso digo que uma sociedade é tão mais desenvolvida quanto melhor souber lidar com os seus criminosos.
Quando a temperatura começa a descer é como se algo fosse violentamente exposto, e o desconforto aumenta. Pode ficar comprometida a promessa de invisibilidade, a diluição na normalidade – esse desejo que é pungente, porque é a imitação da vida que nos disfarça. Mas a frieza da distância e a recusa da empatia foram pontos de partida decisivos para Markus Schleinzer quando começou a desenvolver a história dos últimos cinco meses da vida em comum de Wolfgang, um miúdo de dez anos, e de Michael, o homem de 35 que o sequestrou e que o viola. Os acontecimentos questionavam Markus naquele momento, 2008, e exigiam respostas: histórias de caves austríacas, o caso Fritzl, o caso Natascha Kampusch – que conhecia um volte-face por esses dias (a empatia inicial para com a sequestrada começou a virar-se contra ela, como um excesso que esgotava os portadores de empatia) e o caso algarvio do desaparecimento de Madeleine McCann.

“Nunca quis fazer um filme sobre um criminoso ou uma vítima reais. Nem queria filmar uma biografia nem um documentário, porque a particularização só tornaria o espectador mais confortável: “Ah, é o caso daquela pessoa, não é o meu caso.” E não me interessa a vitimização. É como uma droga, ficamos viciados na empatia, um sentimento perigoso porque desaparece logo a seguir se não se concretiza numa acção. Passamos de Fukushima à Líbia, uma coisa torna-se excessiva e precisamos de mudar para outra. Quando Natascha Kampusch disse que não queria ser vítima para sempre, tornou-se alvo de agressões por parte das pessoas. É esse o problema da empatia: é um instrumento do monstro dentro de nós. A melhor maneira de lidar com a empatia é a distância justa.”

 

 

Sunny,

Yesterday my life was filled with rain.

Sunny,

You smiled at me and really eased the pain.

The dark days are gone,

And the bright days are here,

My Sunny one shines so sincere.

Sunny one so true,

I love you

Wolfgang tem dez anos, Michael tem 35. São imagens de uma vida em conjunto. Como pai e filho. Às vezes parecem um casal com as suas rotinas de normalidade, o Natal, a promoção no emprego. Não se desse o caso de ser uma coabitação forçada, já que Michael, que trabalha numa seguradora, sequestrou Wolfgang, e para ele construiu, na cave, um bunker onde o viola. É com essa experiência da “normalidade” que Michael confronta o espectador: como se o acordasse a espaços de uma amnésia, obrigando-o a regressar, com sentimento de culpa, à violência dessa conjugalidade forçada. O filme acaba por ser, então, a tentativa de descobrir como é que se pode (re)começar uma relação, a do cinema com a figura do criminoso, expurgando o carrossel folclórico dos tablóides. Como figurar? Talvez aproximando-nos – mas à “distância justa”, como fala o realizador – da trepidação e da violência para perceber que tipo de humanidade está ali.

E a vítima? Markus não se julga no direito de estar no lugar dela. Sob pena de obscenidade. É por isso que – coerência levada até ao fim – não existe um único plano em que a criança esteja na origem do olhar da câmara. É por isso que da violação sexual temos só o início, os gestos de quem a comete, ou o fim, nunca a submissão da vítima. “Desde o argumento que a sexualidade está toda na primeira parte. Michael a chegar a casa, a comer, a lavar os dentes, a ter sexo com a criança, a lavar o pénis… para despacharmos essa questão. Foi a primeira coisa que escrevi. E o final, a água a ferver atirada sobre o seu rosto, a tentativa de fuga falhada de Wolfgang, Michael à procura dos medicamentos, o carro, o acidente, a mãe de Michael a abrir o bunker e o filme a acabar aí, antes de a mãe ter a ideia do que aconteceu. Isso seria outro filme.” Quando a criança é descoberta, o filme acaba a tempo de evitar a catarse, que seria o grande plano de Wolfgang. Esse consolo que acolchoaria a perturbação do espectador nunca é facilitado. É por tudo isso que Michael é um filme em que entramos e saímos a tactear. Isso assusta.

Não é difícil começar por associar o filme à experiência austríaca da crueldade. A um gosto, muito lá da casa de Michael Haneke, de fazer do cinema laboratório onde se testam os limites do espectador. Algo disso ficou no desafio, é uma espécie de impressão digital deste cinema. Mas sobrepõe-se um desejo de coabitação para entender. Esse pode ser, de novo, o “escândalo”: recusar a possibilidade de empatia com a vítima e olhar à altura para o criminoso.

“Não tenho de humanizar o pedófilo: ele é humano. Se fosse um monstro, seria uma criatura de conto de fadas. Esta personagem, devo confessar, é comovente – gosto muito daquela sequência em que ele vai esquiar para as montanhas com os amigos”, onde se aventura pelo sexo atabalhoado com uma mulher, forma de se mostrar normal como os outros. “Aí torna-se quase adolescente, a querer mostrar que faz parte dos homens normais. Este é um filme sobre a dificuldade de ser humano, hoje. E sobre o que temos de fazer para pertencermos à parte respeitável da sociedade: a imitação da normalidade. Esta personagem está a tentar fazer todas as coisas que todos nós fazemos: quer um parceiro; quer criar alguma coisa. Não é isso o que todos nós fazemos, copiar, nas nossas vidas, nas nossas relações, a dita normalidade, para nos sentirmos invisíveis e, por isso, seguros?”

 

Sunny,

Thank you for the sunshine bouquet.

Sunny,

Thank you for the love you brought my way.

You gave to me your all and all.

Now I feel ten feet tall.

Sunny one so true,

I love you.

Alguém lhe falou em Brad Pitt, para a personagem de Michael, mas Markus nem sonhou com essa possibilidade. Nem escreveu a pensar em possibilidades, aliás. “Achava que não havia actor austríaco capaz de fazer o papel. Queria um tipo que fosse capaz de implodir em vez de explodir.” Foi em “curtas” da escola de cinema que viu Michael Fuith. Fuith ficou chocado com o que leu. “Não quero fazer isso.” Duas semanas depois voltou à conversa, “mas teria de discutir o assunto com a família, com a namorada”. Seria a sua primeira “longa”, como é que esse papel iria marcar a sua carreira?, duvidou.

Um ano antes do início da rodagem começaram “a falar, a falar” sobre a personagem. E Markus levou o actor para as sessões de casting em que se seleccionaria o adolescente que interpretaria Wolfgang. “Foi difícil para Michael. Duas semanas antes da rodagem, telefonou-me a dizer que queria trabalhar através da distância brechtiana. Disse-lhe que não podia ser. “Se a tua personagem quer foder alguém, ela quer foder alguém.” Estava com medo de tocar na criança [David Rauchenberger], por exemplo. Leu muitas coisas sobre pedófilos e vítimas, tinha a cabeça cheia de imagens, não conseguia lidar emocionalmente com esse peso todo numa personagem, não conseguia integrar todos os aspectos.” Uma estratégia – uma forma de ser “brechtiano” sem ser “brechtiano” – foi o acordo para interpretar como se a personagem pudesse ser dividida em várias: “O tipo que é promovido no escritório; a figura paterna que diz à criança que não pode ficar a ver televisão até tarde; o outsider que tem de criar uma imagem de normalidade; o tipo sexualmente interessado em miúdos… Mesmo assim, as cenas em que Michael violentava foram tremendamente violentas para ele. Depois de um take, esmurrava-se, magoava-se, por ter sentido a sexualidade.”

E David Rauchenberger, que tinha dez anos quando filmou? “Não podia fazer um filme sobre o abuso de uma criança estando eu a abusar de alguém e não lhe dizendo tudo o que devia sob pretexto de que ele não entenderia. Antes do casting, distribuímos a todos os candidatos e aos pais uma sinopse que denunciava o que se iria ver ou não no filme, para ninguém dizer que não sabia. Não querendo escamotear o facto de o filme ter colocado David em contacto com uma história de pedofilia mais cedo do que o normal, e que por isso tenho de viver com essa responsabilidade, a verdade é que podemos falar sobre sexualidade com as crianças, hoje. David sabia quem era Natascha Kampusch e Fritzl, sabia o que era isso dos crimes contra a integridade física. Não tinha era imagens para isso. Mas o meu filme não precisava dessas imagens, de coreografar as posições. Temos de ir ao encontro da criança no lugar onde ela está.”

O que não impede que um filme com/sobre crianças seja sempre um espaço para a ansiedade do espectador, como um último tabu – veja-se a forma como uma sequência de matança de porco em Nana, que é presenciada pela personagem/criança do filme de Valérie Massadian, tem levado à indignação de espectadores. A rodagem de Michael parece ter montado uma engrenagem de cuidados e de lucidez. “Dois meses antes da rodagem fomos para casa de David, passámos o guião a pente fino à procura das coisas que ele conseguia dizer e das que ele não conseguia dizer. A questão era tratar David como um igual. Os desenhos que a personagem faz são desenhos que ele fez. Foi ele que decorou a cave, que foi às compras e decidiu o que queria lá meter. Queria que ele sentisse que tinha uma voz. E o cenário – porque a cave foi recriada em estúdio – estava preparado para, de cada vez que ele dissesse que não conseguia filmar mais ou que o ambiente estava claustrofóbico, as paredes deslizarem e o estúdio ficar aberto, um enorme pátio. Tinha uma equipa de gente inteligente comigo. Era importante, por exemplo, ter cuidado com a linguagem. Tínhamos a folha de trabalho com as cenas do dia. Como nomear essas cenas? Decidimos que seria David a nomeá-las. “Ele vai à cave e é mau para o rapaz”, por exemplo. E foi importante perceber como o discurso dele se ia desenvolvendo.”

Sunny, thank you for the truth you let me see.

Sunny, thank you for the facts from A to Z.

My life was torn like a windblown sand,

And a rock was formed when we held hands.

Sunny one so true,

I love you.

Markus vai buscar Hannah Arendt não por causa da “banalidade do mal” mas por aquilo que ela escreveu “sobre o facto de, ao pensarmos, não seguirmos o que os outros pensaram antes, e só assim algo poder mudar”. A defesa de uma solidão, portanto. Acrescenta Markus: “Não gostamos do confronto, gostamos quando as coisas nos chegam prontas a consumir. Ora, há coisas que não são consumíveis. Lembro-me da minha primeira imagem de morte, tinha 19 anos, na televisão, a guerra na Jugoslávia: um cadáver e um corpo a comer um pedaço de carne desse corpo. Hoje, a morte tornou-se consumível.”

O que é que Hannah Arendt tem a ver com Sunny, dos Boney M? Antes disso, porque é que quando Michael sabe que foi promovido começa a cantar sobre Sunny: “Sunny/Yesterday my life was filled with rain./ Sunny,/ You smiled at me and really eased the pain”? Há alguma fixação austríaca no disco/música de dança que foi considerado lixo e que agora faz parte do kitsch politicamente correcto? – noutro filme, Still Life, de Sebastian Meise, às voltas com a suspeita de fixação pedófila de um pai pela filha, há Voyage voyage, original de Desireless…

“Quando eu e a minha irmã éramos miúdos, adorávamos gravar canções, às vezes até inventando foneticamente… Esta música ficou comigo parte da minha vida. Cantava-a como um cão de Pavlov. Só mais tarde percebi as coisas terríveis que a letra dizia. Michael tem a mesma idade que eu tinha – mas não fui sujeito a alguma experiência de violência em criança [risos]. O momento em que ele canta a música é o momento, no filme, em que foi promovido e por isso pensa poder dar um passo em frente na sua visibilidade, sair para fora da sua personalidade – ele permite-se sentir mais segurança na vida. Sente orgulho, quer que o seu parceiro sinta orgulho. As pessoas riem-se inicialmente, quando ouvem a música, mas depois reparam na letra. Do que não gostam, e tenho testemunhos disso, é da música no genérico final. Preferiam o silêncio. Ora, acho que o silêncio é muitas vezes mal usado: dá ao espectador a possibilidade de sentir os outros; se uns aplaudem, os outros também aplaudem. Uns seguem os outros. Não quero dar hipótese ao silêncio, quero obrigar as pessoas a ficarem com elas próprias. Lembro-me, por isso, de Hannah Arendt.”

Markus Schleinzer, 41 anos, ex-director de casting para Michael Haneke, que considera o seu tutor, e para Ulrich Seidl, que anunciou um projecto cinematográfico sobre as caves austríacas (“é um projecto complexo, acho que ele nunca o vai fazer”, supõe Markus), foi apanhado de cuecas a cuidar do seu tomateiro. Os jornalistas precipitaram-se para sua casa, entrevistas ao recém-chegado ao circo. Markus reparava, no final das entrevistas, nos olhares que desenhavam panorâmicas de inspecção. “Era interessante”, propunham-lhe, invariavelmente, “tirar fotografias na sua cave.” Markus respondia: “Eu não tenho cave em casa. Mas podem procurar debaixo da cama. Ou dos tapetes.”

Sunny,

Thank you for the smile upon your face.

Sunny,

Thank you for the gleam that glows with grace.

You”re my spark of nature”s fire,

You”re my sweet complete desire.

Sunny one so true,

I love you.

I love you

I love you

I love you

I love you

I love you

I love you

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