Ventura unchained

ventura

 

Ventura, o regresso. E with a vengeance. Assim cantam Os Tubarões em Cavalo Dinheiro, a canção chama-se Alto Cutelo: “Explorado/Enganado/Mas um dia vou voltar/Monte Gordo e Malagueta/A água vai jorrar”

As gentes de Juventude em Marcha (2006), um filme anterior de Pedro Costa, tinham-se posto a caminho. Entre eles, havia um herói de inquebrantável solidão, olhar perdido que não arredava pé do seu passado, Ventura, imigrante cabo-verdiano que chegara a Lisboa nos anos 70.

Para ele, e para eles, Pedro Costa criara espaço, nessa anterior longa-metragem, para uma afirmação de existência, espaço para mandarem as suas cartas e contarem as suas histórias. Juventude em Marcha era, se calhar, um documentário sobre essas ficções, um protocolo contido, protector (e até por isso mesmo: um auto pícaro e lírico). Era também um filme claro sobre a escuridão. Mais do que Ossos, de 1997, mais do que No Quarto da Vanda, de 2000. Era escuro e cheio de segredos como os iniciais O Sangue (1989) e Casa de Lava (1994) – foi aí, em Cabo Verde, que tudo isto começou, aliás.

Em Juventude em Marcha iluminava-se o vampirismo. Ao seguir essa juventude das barracas escuras das Fontainhas para um bairro social de luz demasiado branca que a deixava em perda com os seus fantasmas, Pedro Costa reinventava-se. Foi nessa altura que Ventura começara a deslizar para o silêncio. Foi nessa altura que, numa conversa entre ambos, o realizador – contou-nos Costa numa entrevista em 2006 – descobriu que entre 1974/1975 estiveram, talvez e sem o saberem, os dois nos mesmos sítios, no Jardim da Estrela ou em São Bento. Um galvanizado com a sua História, com os filmes, com a música e com o 25 de Abril, o outro paralizado pelo medo, ignorado pela Revolução.

E terá sido, anos depois nas Fontainhas, um encontro de iguais: “É os olhos, acho eu. É o que me dizem. É também o puxar muito ao negrume. É um tipo muito destruído e eu também. Muito tradicionalista, teimoso, e muito secreto. E inatingível. Mete medo, é difícil a relação com ele, foi um tipo que se fechou.” Citamos essa entrevista de 2006, feita na apresentação de Juventude em Marcha na competição do Festival de Cannes. Nela Costa dizia ainda que estava tudo em aberto entre eles e o cinema: “A coisa está quase apurada para poder vir a ser outra coisa ainda, para eles passarem para a ficção. Eles, não eu.”

Continuaram então em marcha, em direcção ao passado e a essa noite escura: Cavalo Dinheiro.

É a actualização de um protocolo, agora definitivamente expressionista. Tudo continua a passar-se entre eles, que não haja dúvidas. Quer dizer: Cavalo Dinheiro é um filme que se tacteia. Cada plano parece ser deflagrado, lentamente, intensamente, pelos segredos, pelos pactos que nele se escondem. Como espectadores podemos sempre regressar a ele para, a cada nova visão, tentar sossegar com a ilusão de que os planos do filme, afinal, nos deixam ver alguma coisa, nos incluem e não nos derrubam. Como se houvesse uma outra possibilidade, a cada nova visão, de (melhor) respirar dentro de um sonho. Mas Cavalo Dinheiro só existe por causa do que esconde.
E no entanto…

As mãos de Ventura alongaram-se. Nunca nos fora dada a oportunidade de reparar nas suas unhas tão brancas e duras. E a tremura do corpo…

O cinema intervém, distorce aquele que sobe e desce as escadas. Pedro Costa coloca Ventura à solta na cidade – andam a marchar os dois juntos, é claro. Não nos dá Ventura de bandeja, porque a protecção continua feroz. E aquele olhar perdido continua por interceptar, o encantamento por quebrar. Mas no lugar do equilíbrio entre documentário e ficção que Juventude em Marcha propunha de forma tão pura, está agora matéria fumegante.«

monteiro

É a altura de assumir que em vez de Fritz Lang ou de Jacques Tourner ou de John Ford ou de…em Cavalo Dinheiro caminhei com Recordações da Casa Amarela e com João César Monteiro (claro, é uma forma de caminhar também com Murnau). Como se todo o filme de Costa estivesse sempre a fumegar, tal como no plano final do filme de Monteiro: João de Deus, depois de Lívio (Luís Miguel Cintra) o ter libertado e lhe dizer para infernizar, “Vai e dá-lhes trabalho”, metamorfoseando-se, mãos alongadas, o corpo distorcido, Nosferatu desembarcando em Lisboa, um vampiro a sair das catacumbas da cidade.

 

Sons de passos, corredores de hospitais e asilos – é também esse o som de Cavalo Dinheiro. Ventura libertado, profeta, explorado, vingador, zombie, fantasma, criatura de cinema, enfim, ícone, se calhar o único, hoje, no cinema português. Não lhe apanhamos o olhar, mas ele invade-nos. É a sua vingança, meter-nos no seu sonho, no tempo da sua memória, no medo que está na História portuguesa por contar.

 

“Explorado/Enganado/Mas um dia vou voltar/Monte Gordo e Malagueta/A água vai jorrar”

 

A metamorfose aconteceu. Vem, Ventura, dá-nos trabalho.

A cabeça de Dafoe, o corpo de Depardieu

PasoliniGerard Depardieu in Welcome to New YorkNo Festival de Cannes, em Maio, quando apresentou Welcome to New York, inspirado em (mais do que filme “sobre”…) Dominique Strauss-Kahn (que no filme se chama Devereaux), o realizador Abel Ferrara aproximara essa figura da de Pier Paolo Pasolini, personagem do seu Pasolini, que apresentaria no Festival de Veneza em Setembro: a “blasfémia” como forma de ambas não se poderem conter, não poderem negar angústias e pulsões sob pena de se negarem a si próprias; como expressão vital, percurso de quem “prescindiu dos espelhos e dos reflexos, como num filme de vampiros”, dizia Ferrara. Muito excitante, então, confrontar os dois filmes. Natural, também, a ânsia de ver a solidão do universo ficcional de Ferrara ser o habitat de figuras do chamado mundo real – como se tivessem a energia, a verdade, das criações da tal ficção com vampiros.

Pasolini é um dos cineastas da formação de Ferrara, um dos seus ícones. Fala dele como um adolescente fala do ídolo rock que trata por “tu”. Pasolini é filme de fã. Dafoe veste-se com as roupas de Pier Paolo, emprestadas por Ninetto Davoli, amigo e actor do poeta/cineasta (Teorema, Decameron, Os Contos de Cantuária…). A cerimónia tem como memorabilia as palavras, o pensamento de Pasolini.

“A arte narrativa está morta, estamos no período de luto”, dizia Pier Paolo. O fã Abel oferece ao ídolo (“He was the Teacher we are the students”, vai dizendo Ferrara nas entrevistas) a prova de que aprendeu a lição, querendo ficar bem perante o mestre. Um filme sobre Pier Paolo? Um filme para Pier Paolo: um compósito, substituindo o tradicional biopic, que tem por base a recriação da última entrevista de Pasolini, a Furio Colombo, onde sintetizou um totalitarismo emergente, o consumismo, a destruição de uma humanidade ancestral. Adorna-se esse centro com a visualização de passagens de Petróleo, o romance póstumo de Pasolini, e com a imaginação do que poderia ter sido o filme que deixou por fazer, Porno-Teo-Kolossal, que teria participações de Ninetto Davoli e Eduardo De Filippo (piscadela de olho: é Davoli que agora interpreta De Filippo; suplemento de emoção na homenagem: Adriana Asti, actriz em Accatone, interpreta a figura da mãe de Pasolini, tão amada pelo filho).

Pasolini, nas intenções de Ferrara/Dafoe, habita o pensamento de Pier Paolo. É um filme sobre uma thinking head. figura sem corpo, sem sexualidade (mesmo que haja “reconstituição” das cenas que levaram ao crime, Óstia, 2 de Novembro de 1975), figura sem escândalo. Se Dafoe é um impressionante duplo, é sobretudo um invólucro para um pensamento – perante o qual Ferrara aparece dócil, reverente, desse pensamento fazendo consensual resumo.

DEPARDIEUdepardieu 1Em Welcome to New York Abel teve à disposição o corpo, e os uivos, de Depardieu. Gerard: uma afirmação escandalosa. Agora sim: Devereaux/D.S.K (Depardieu?) é uma criação do universo de Ferrara, como o Harvey Keitel de Polícia sem Lei. À thinking head opõe-se o corpo uivante.

Mais bonito ainda: permite-se que um corpo continue a contar a sua história e a sua memória – e através dele, continuarmos a nossa. As imagens de Devereaux/Depardieu nu são um inapelável presente daquilo que se vislumbrou no corpo nu entre os arranha-céus de Manhattan no Adeus Macho (1978), de Marco Ferreri: Depardieu jovem, quatro anos depois de se ter imposto à produção de Les Valseuses (1974), de Bertrand Blier, como se disso dependesse a vida (e dependia, percebe-se na autobiografia que publicou, Ça C’est Fait Comme Ça), energia imparável condenada à solidão, ao anacronismo, porque o mundo estava a acabar – isto é, o casal, tal como o conhecemos. O seu Devereaux de Welcome to New York é o presente da viagem do instinto iniciada pelo voyou de Châteauroux, delinquente, iletrado, quase autista, que encontrou nos textos e no cinema, em Peter Handke, Duras ou Pialat, a possibilidade de ler, falar, de se dizer. Não há redenção que salve Devereaux. Não há sentimento de culpa que páre Depardieu, escreve em Ça C’est Fait Comme Ça, isso seria deixar de respirar.

O cinema apocalítico de Ferreri, companheiro de escândalo, nos 70s, de Pasolini, construiu-se na expectativa de destruição de um mundo – e empurrou esse mundo para a destruição. Em A Última Mulher (1976), Ornella Mutti desafiava Depardieu a inventar algo de novo para a “família” (Depardieu cortava o pénis). Talvez se possa dizer que Welcome to New York, ou Devereaux (Depardieu) e Simone (Jacqueline Bisset) – ou DSK e Anne Sinclair –, continua esse desastre, a história de amor.

Interstellar: o que o tempo fez

Há uma promessa no início de Interstellar: olhar para o céu à procura de sinais.  Mas quando o filme de Chris Nolan chega, enfim, ao espaço, parece que já não há nada para encontrar.

Por momentos, sim, é uma promessa sobre o que já fomos e o que somos agora – espectadores de cinema.

INTERCLOSESAMHá uma promessa de sopro nos inícios de Interstellar, de Chris Nolan, quando a parte terrestre do filme começa a ser interpelada pelo espaço: Matthew McConaughey, tal como o Roy Neary/Richard Dreyfuss de Encontros Imediatos do Terceiro Grau (Steven Spielberg, 1977) a olhar para o céu à procura de sinais – a Terra está à beira de um desastre ambiental no filme de Chris Nolan,  McConaughey sacrifica a família em prol de um desígnio superior, a Humanidade.

Ou então, Os Eleitos/The Right Stuff (1983), de Philip Kaufman, porque McConaughey está distante do modelo homem/criança do subúrbio spielberguiano (Spielberg esteve ligado ao projecto, foi para ele que Jonathan Nolan, irmão de Chris, escreveu uma versão do que é hoje o argumento) e é mais capaz de se mostrar herdeiro natural do apelo da fronteira, da inquietude do pioneirismo, tal como vivido no western – Sam Shephard era Chuck Yeager, era test pilot mas também era um cowboy, n’Os Eleitos, um dos mais belos filmes, e não dos mais vistos, do cinema americano.

O que já fomos como espectadores…Nolan disse numa entrevista: “Cresci numa época que foi a idade de ouro do blockbuster, em que aquilo a que podemos chamar o filme de família tinha apelo universal. É algo que quero ver de novo. No que toca ao tom do filme, olha para onde estamos como pessoas e tem a universalidade da experiência humana.” A promessa inicial de Interstellar é esta: fazer a (nossa) história, a história daquilo que vivemos, daquilo em que já acreditámos. Não é só possibilitar a contaminação da nostalgia, simular esse passado do final dos anos 70, princípio da década de 80 (a luz, mesmo a de Poltergeist), e a inocência como se tudo isso pudesse existir num tempo imobilizado fora de tempo, que era o que fazia JJ Abrams em Star Trek, 2009, e em Super 8, 2011. Seria mais do que isso, então: seria interceptar a viagem, observar o que o tempo (nos) fez.

É uma promessa que só dura enquanto sobrevive a crença de quem olha– se calhar: enquanto o espectador julga encontrar no ecrã o apelo que McConaughey, Dreyfuss ou Shephard escutam do céu. Toda a primeira parte de Interstellar se vê com dose suplementar de inquietude (não lhe chamaria angústia) perante a possibilidade de nada já estar, se calhar, ali. A verdade é que a ambição de contar essa história (que é, nem mais nem menos, uma parte da história do cinema americano) encontra pela frente a realidade do que somos hoje como espectadores (e espectadores de um filme de Nolan).

Quer dizer, Interstellar acaba por ser mesmo feito à nossa medida, somos nós, hoje, consumidores de um catálogo virtual, feito e refeito à la carte. Quando se chega aos céus é que, afinal, se descobre que não há nada a encontrar? Depois de simulacros do Abismo, de James Cameron (ou o amor a espalhar-se entre as estrelas no lugar do amor absoluto nas profundezas), depois das variações do 2001, Odisseia no Espaço, de Kubrick, sem Danúbio Azul (para quem vê no Interstellar a coabitação Spielberg + Kubrick, lembre-se que isso já foi testado, chamou-se AI, Inteligência Artificial), o filme mostra-se árida paisagem para as cabeças falantes. É só isso, afinal, Interstellar, sem drama, sem pathos. Há qualquer coisa de involuntário momento de verdade, como a apoteose de um anti-clímax (se isso fosse possível): quando todas as promessas iniciais se esfriam (que Nolan não é Spielberg, nem Kubrick, nem Cameron, nem nunca há-de ser, já se sabia, de qualquer forma…), quando a paisagem emocional se congela, o embaraçoso vazio que se mostra, mal disfarçado com planos do espaço e de naves, não pode já ser preenchido – nem por qualquer sucessão ensurdecedora de tweets a anunciar  “acontecimento”.

 

A vida e a morte de Fassbinder já estavam aqui

Rainer Werner Fassbinder como Baal, de Brecht, como rock star, na verdade – mais de uma década antes de Bowie se ter interessado pela personagem. Filme pouco visto, rodado por Volker Schlöndorff para a televisão em 1969, e logo interditado pelos herdeiros do dramaturgo, é um diamante em bruto, todo ele sensualidade em expansão. É a energia do Novo Cinema Alemão a explodir. É o mito Fassbinder em construção.

FASS

No dia 21 de Abril de 1970, Helene Weigel, viúva de Bertold Brecht, via, do lado oriental do Muro de Berlim, o Baal que Volker Schlondorff adaptara da peça do marido e que a televisão da ex-RFA transmitia nessa noite.

Helene Weigel via a entrada em cena de Rainer Werner Fassbinder, qual rock star de blusão e cigarro na boca mais de uma década antes de David Bowie, que também foi um berlinense, se ter interessado pela personagem de animal associal e poeta transbordante da floresta.
Helene achou um horror. Por decisão sua, e depois dos herdeiros de Brecht, esse Baal permaneceria praticamente invisível durante quatro décadas.
Helene Weigel não podia ter visto o que Volker Schlöndorff talvez tenha intuído quando num dia de Primavera entrou num teatro de Munique onde Fassbinder e a sua troupe do Antitheater faziam Preparadise Now. Como Volker escreveu na sua autobiografia, faziam cinema, mas em cima do palco, e como mais ninguém no teatro alemão. Pensou nessa troupe para fazer deliberadamente “teatro filmado” na sua adaptação à televisão de Baal. (Nesse mesmo dia Rainer juntou Volker aos elementos da sua equipa para lhes mostrar a sua estreia na realização, O Amor é mais Frio do que a Morte.)
FASSbVolker nunca vira “gente assim” — ao mesmo tempo artistas, boémios, pequeno-burgueses, criminosos e proletários. Tê-los-ia Fassbinder inventado? Ao ver Baal, podemo-nos perguntar: terá Schlondorff contribuído para fixar o “mito” Fassbinder, dando-lhe ideias para essa sua ideia de uma vida como um filme?
Este Baal pouco visto exerce um sortilégio tremendo: como diamante em bruto que se estilhaçaria nas futuras personagens à beira da explosão (sexual) do Novo Cinema Alemão; como, mesmo sendo um filme de Schlöndorff, peça que pertence por inteiro ao teatro íntimo e sadomasoquista de Fassbinder, que aqui começava a expandir-se, já que por aqui andavam os homens e mulheres com quem trabalharia, que manipularia e que amaria — Dietrich Lohmann, Peer Raben, Harry Baer, Irm Hermann, Waldemar Brem ou Hanna Schygulla, que aqui, como na vida, permaneceria sempre distante, protegida das humilhações.

A entrevista a Volker Schlöndorff

“Todas as coisas podem desaparecer, só a memória pode sobreviver”

ossos

WANG2-1024A implicação física de um cineasta na construção de um arquivo da memória humana, arrastando consigo o espectador. É o que pode apaziguar: ali estamos todos nós. Dois filmes do chinês Wang Bing no DocLisboa, Traces e Father and Sons.

 

Talvez seja um auto-retrato – uma forma violenta de auto-retrato. Da palavra – auto-retrato – talvez se desprenda um odor de narcisismo, coisa que está ausente do cinema de Wang Bing.

Reformulando, Traces, a curta-metragem do cineasta chinês que é exibida dia 26 no Cinema Ideal (21h45), é uma espécie de auto-retrato da obra: a implicação física de um cineasta na construção de um arquivo da memória, arrastando consigo o espectador para essa aventura que tem dimensão épica mas é, afinal, tão humana. Esse é um pacto que não é negociável. Voltamos a reformular: é mesmo um auto-retrato.
As imagens foram captadas em 2005, no local em que Wang Bing rodava A Fossa, a sua (até hoje) única experiência de ficção – que era, na verdade, um filme nada diferente dos seus documentários. Baseava-se nas histórias verídicas dos que morreram de fome em campos de trabalho do Noroeste da China, entre 1959 e 1960. É essa a matéria de Traces: terra, dunas, ossos, vestígios, gritos na forma de inscrições em grutas – “Liberdade”. E um cineasta a caminhar atrás disso.
Em 1957, no seguimento da campanha contra os anti-revolucionários lançada pelo partido, o governo local da província de Gansu enviou três mil chineses para campos de reeducação, Mingshui e Jiabiangon. Em cada um deles, cerca de mil pessoas morreram de fome num ano; sobreviveram cerca de 400. Esse é o tipo de informação, background social e geográfico, que Wang Bing só desvenda no final dos filmes. Para implicar o espectador, também fisicamente, na responsabilidade pelo trabalho de memória, para que ele não se proteja com a distância – o que acontece “aos outros”. O cinema de Wang Bing dá conta de todos nós, isso talvez nos possa apaziguar.

Volta a ser assim em Father and Sons (dia 23, 24h, Ideal), duríssimo, surdo, estrebuchar de uma família que não consegue erigir, dar forma, aos seus laços. Coisa inapelavelmente imóvel – câmara fixa no interior de um casebre de um pai operário, que migrou no interior da China à procura de trabalho, e dos seus filhos que se lhe juntaram. O cinema de Wang submete-se aos ritmos e gestos de quem filma, por isso em ‘Til Madness do us Part (2013), com as suas quatro horas de duração no interior de um hospital psiquiátrico, a câmara não tinha outra hipótese senão correr ofegante, como num ginásio, atrás de um inter­nado no hos­pi­tal, figura de irreprimível ener­gia.

No primeiro trimestre de 2015, o Cinema Ideal, em Lisboa, programará uma retrospectiva integral de um cineasta – que se auto-produz, e cuja obra é invisível no seu país (a não ser através do DVD pirata) – para acompanhar a estreia comercial de A Fossa e de Três Irmãs.

A entrevista, aqui

O silêncio

benardO que me desagrada em Outros Amarão as Coisas que eu Amei de Manuel Mozos sobre João Bénard da Costa, não é João Bénard da Costa. O que me desagrada é Manuel Mozos, a sua paralisia, o seu silêncio. É ele que se cala, não é Deus. O título é bastante assustador: é uma maldição lançada sobre o mundo?

David Fincher, o sonso

Sem coragem para assumir o exploitation movie, Fincher dissimula-se (dissimula-o) em algo que aparenta ser uma aproximação ao glacial tempo do fim do amor, do inferno do casal.

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David Fincher em assinalável ponto de sonsice: sem coragem para assumir abertamente o exploitation movie, dissimula-se (dissimula-o) em algo que aparenta ser uma aproximação ao glacial tempo do fim do amor, do fim do romantismo – o inferno do casal. Mas num território que já foi tão ocupado, por Ingmar Bergman, Woody Allen, Chabrol, Hitchcock, a sua contribuição é ruminante e o faz-de-conta e o jogo de máscaras muito menos do que perversos. Sobretudo, pouco convictos, já que a contribuição é pouco séria e pouco adulta. Fincher nada tem de original para dizer sobre “o casal” mesmo que nos enfie pelos olhos dentro, entrando nesse momento pelo caricatural, os sinais da actualidade, este tempo, hoje, os reality shows – aquele movimento ascendente que “apanha” o casal reunido frente às câmaras de televisão, à porta de casa, cheira a denúncia e a sacristia, e é legítimo o espectador perguntar-se se tudo se resume a isto e se é tudo o que Fincher tem para dizer.

Alguém, na imprensa internacional (Matt Zoller Seitz) escrevia que Em Parte Incerta “is art and entertainment, a thriller and an issue”. Nem uma coisa nem outra, cumprindo, claro, os rituais de ambas as coisas – com a meticulosidade habitual de Fincher que, como (lhe) acontece muitas vezes, parece esgotar-se em si mesma e o trabalho sobre as superfícies tornar as coisas apenas superficiais.

Um coração que queria bater em Em Parte Incerta é o de uma psicopata, a personagem de Rosamund Pike, que se filia naquelas “máquinas de matar” de Glenn Close (Atracção Fatal) e Sharon Stone (Instinto Fatal) que fazem já parte da iconografia do final dos anos 80 e dos princípios dos anos 90. É ela a mulher cujo desaparecimento faz recair sobre Ben Affleck, o marido, a suspeita de se ter desembaraçado dela, assassinando-a. Mas enquanto os filmes de Adrian Lynne (um nome do “visual” como Fincher, veio da publicidade) e de Paul Verhoeven/Joe Eszterhas exibiam explicitamente a sua desfaçatez, levando as interpretações das actrizes, sobretudo Sharon Stone, aos níveis da paródia camp, Fincher esconde-a, faz figura de menino de coro ao pé desses filmes e ao pé dessas actrizes. O resultado é que Rosemund Pike fica enredada num artificial e pouco convicente autómato. Aquele tom terminal da voz-off que Cronenberg no seu Crash aguentara, de forma arriscada, na boca dos seus actores (já foi notada a semelhança física entre Rosamund e a Deborah Kara Unger do filme do canadiano), é um exercício de falsidade e grotesco. Fincher não consegue senão objectificá-la – a Rosamund Pike –, olhando-a confortavelmente do lugar de Ben Affleck. Por isso, para além da misoginia que aqui se esconde (Verhoeven expunha-a, forma de a destruir), é uma oportunidade perdida para complexificar a personagem masculina, que nunca chega a ser perturbante, misteriosa ou pusilânime. Pelo contrário, é o porto moralista a que o realizador se agarra para reforçar convenções e estereótipos – olhe-se só para o Cary Grant de Suspeita, de Hitchcock, um filme sobre o inferno conjugal que junta a arte e o thriller.

 

Os Maias, efeitos culturais

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Até há uma espécie de compère de revista, João da Ega/Pedro Inês, de cuja audácia o filme se aproveita (mais do que) o necessário para confortar as expectativas do espectador.

João Botelho instala-se no território do “cinema de prestígio”: os telões pintados em background são pequenos acontecimentos em si, “efeitos culturais”.

Os Maias está longe da tensão de Conversa Acabada (1980), Um Adeus Português (1985) ou Tempos Difíceis (1987), por exemplo, que eram filmes que também falavam de “nós, hoje” mas com uma rugosidade altiva (postura nada contraditória com a tristeza que circulava neles) que não tinham contemplações. Já nesta adaptação da obra de Eça, o espectador nunca vê o seu conforto ameaçado – mesmo que supostamente esteja a olhar-se ao espelho, nunca vai lá encontrar nada de lúgubre.

Ir aos Maias torna-se, por estes dias, um ritual autocelebratório. A reivindicação do realizador sobre a capacidade de o filme falar sobre hoje transformou-se em caução cultural, o que amansa qualquer confronto mordaz dentro da sala. Num conjunto de interpretações middle of the road, até há uma espécie de compère de revista, João da Ega/Pedro Inês, de cuja audácia o filme se aproveita (mais do que) o necessário para confortar as expectativas do espectador.

É como se o cinema de Botelho fizesse também uma adaptação pitoresca de si próprio.

Satyajit Ray, a casa e o mundo

Satyajit Ray em seis títulos: a impossibilidade de regressar a casa depois da exposição ao mundo. Eis uma obra que se rende comovida às interacções no espaço conjugal.RAY-1024

 

 

– “Sabes o que isto é?” – é o globo terrestre.
– “Conta-me o que ouviste, o que viste…”
– “Eu vi tudo…”

Estamos a meio da chamada Trilogia de Apu, de Satyajit Ray, estamos em Aparajito (1956). Apu regressou à aldeia. Conta à mãe as experiências e descobertas em Calcutá, onde estuda e onde trabalha. O núcleo familiar já foi abalado (morte do pai). A tristeza materna, disfarçada pelo “conta-me o que ouviste, o que viste…”, é uma silenciosa rendição: tudo vai continuar a desmoronar-se em casa, o mundo chama por Apu.
A trilogia constituída por Pather Panchali (1955), Aparajito (1956) e O Mundo de Apu (1959), em que todas as mortes são percebidas, antecipadas como o vento a varrer antes da tempestade (a própria materialidade dos filmes parece ser tocada por essa íntima coabitação entre as coisas), capta com intensidade lancinante (mas a delicadeza parece não ter fim) as reverberações desse chamamento que desinquieta o espaço doméstico.

Não vamos ver a Trilogia de Apu no ciclo que a Leopardo Filmes dedica, desde dia 25 no Nimas, em Lisboa, ao cineasta indiano (1921-1992) – esse conjunto de três filmes que, como alguém escreveu, proporciona a mesma emoção que o reencontro com a trilogia de O Padrinho, de Coppola, talvez porque nos dois casos a cada visão se alarguem possibilidades de comoção perante as personagens. Mas o que vamos ver – depois de Lisboa, será a vez do Porto, Coimbra, Braga, Setúbal ou Figueira da Foz ao longo de Outubro – é uma extraordinária aventura humana. Ao longo de seis títulos – A Grande Cidade (1963), Charulata (1964), O Cobarde (1965), O Santo (1965), O Herói (1966), O Deus Elefante (1979) – desenha-se o périplo sentimental de seres que parecem protegidos na sua inviolabilidade mas que são, simultaneamente, agentes da sua destruição quando se expõem, quando a expõem (a casa), ao mundo.

Entra a mulher, sai o marido

Há uma narrativa que podemos sobrepor às ficções e às personagens particulares de cada um desses filmes: a (talvez) impossibilidade de regresso a casa incólume, a irreversibiliade da mudança ou (de novo, talvez) a loucura quando se recusa o tempo. Podemos fazê-lo, autoriza-nos a universalidade do cinema de Ray – é nesse sentido, o de transcender o particular, que se entende o que foi escrito no programa do ciclo que o Berkeley Art Museum/Pacific Film Archive dedicou ao cineasta: que “antes do ‘circuito internacional de cinema de arte e ensaio’, antes do ‘Cinema do Terceiro Mundo’, antes do ‘cinema lento’ e do ‘realismo rural’, houve Satyajit Ray…”, realizador universal.
É um dos grandes cineastas da intimidade, autor de uma obra que se rende comovida às interacções no espaço conjugal. Na narrativa que podemos “impor” a este ciclo, A Grande Cidade e Charulata (obras-primas) seriam os momentos em que as personagens, de classes sociais diferentes nos dois filmes, escutam o apelo do mundo. Como se a ele fossem apresentadas – as consequências serão irremediáveis.

Ray transporta ao colo o casal de A Grande Cidade. Negoceia por eles a saída de casa – como em outros filmes do realizador, a mulher vê-se forçada a procurar trabalho, a autonomizar-se do espaço doméstico, pondo “a casa” em risco, levando a que, como se diz às tantas num dos filmes, “a entrada da mulher” seja “a saída do marido”. A escala de planos é trabalhada de forma a preparar a diluição das personagens na cidade – primeiro os dois no autocarro, mais tarde os interiores dos edifícios onde a personagem feminina se dirige para as suas funções, só na última sequência o plano geral, e os dois tão temerários e nós tão comovidos com eles, e tão receosos de que falhem, como em relação ao casal do Aurora, de Murnau. (Mas é de Jean Renoir que sempre nos lembraremos, porque Renoir, que Ray conheceu quando o francês foi à Índia filmar O Rio, de 1951, é a grande “presença” neste cinema que se impõe não mostrar muitas coisas, mas mostrar as coisas justas.)

RRRRRAAAAAO apelo do exterior é o vento que, literalmente, escancara as portas e janelas da casa de Charulata, filme baseado em The Broken Nest, de Rabindranath Tagore. O ninho conjugal é, de facto, violado – e o marido fica em vias de sair de cena, novamente. Mas permanece secreta, e de certa maneira inviolável, a forma como um casal ajusta a sua sobrevivência e faz o compromisso para restaurar o habitat. Ray escuta o torpor desta casa – a de Charulata, que espreita o mundo com óculos de ópera antes de se atrever a colocar a sua marca lá fora – até aos seus mais ínfimos e insanes acordes. Só superou isto em The Music Room (1958) – mas esse foi o deslize com a loucura dos que fecharam a casa ao tempo e ao mundo e por isso é o filme máximo do realizador.

E depois, nesta ficção sobre as ficções de Ray, vamos encontrar no Nimas e nas outras salas aqueles que já saíram de casa, que já experimentaram o mundo e mostram o que essa experiência deixou neles. Na dicotomia entre a casa e o mundo (título, aliás, de um dos filmes do realizador, de 1984, também baseado em Tagore), Satyajit Ray não se decide, mas o seu coração está em casa. É talvez por isso que os filmes em que apanha as personagens no mundo e a fazerem compromissos com o tempo, há uma ironia triste a velar tudo. Ou então, também como velatura, como protecção, as marcas de um cinema de género.

Ycaparayheroia)4col-1024Ray sempre responsabilizou Hollywood pela sua educação cinéfila, os “well-crafted films” dos anos 30 e 40 – ficou disso o orgulho que tinha pelo facto de espectadores e críticos não conseguirem perceber se os seus interiores domésticos eram fabricados em estúdio ou reais. O Herói, com o encontro num comboio entre uma estrela de cinema (Uttam Kumar) e uma jornalista (Sharmila Tagore), podia ser, no fundo, uma screwball comedy, há esse género com potencialidade de turbulência em memória longínqua. É um encontro com uma personagem que apagou a sua memória, fez blackout para existir. Se nos for permitido delirar: um impossível encontro entre a Jean Arthur mascarada de austeridade por Hawks ou Capra com o Marcello Mastroianni a tapar o seu vazio existencial com óculos escuros como em La Dolce Vita de Fellini.

Mas é em O Cobarde que esta memória do filme de género americano tem contornos quase fantasmagóricos e ajuda Ray a encarar as suas personagens em périplo pelo mundo. Começa como um film noir – de Walsh, de Ulmer, de… –, numa estação de gasolina, um daqueles momentos de fatalidade, de viagem sem regresso, para Bogart ou Ida Lupino. Mas o “casal” aqui é interpretado por Madhabi Mukherjee, ela, e Soumitra Chatterjee, ele, que interpreta um argumentista de Calcutá que, porque o carro avaria numa aldeia, encontra, já casada, a mulher que antes amou e desiludiu.
– “Se sou feliz?”, responde-lhe ela com uma pergunta. “Que isso fique um mistério”.
O “cobarde” do título é interpretado pelo actor que foi Apu enquanto adulto. A mulher, refugiada num silêncio e numa frieza de fatalidade, é interpretada por aquela que foi Charulata. Eis a violência que o mundo lhes fez, eis o que encontramos, dois seres condenados a adormecerem-se para poderem continuar a sua viagem pelo mundo.

O palmarés de Veneza não ficou embalsamado

A vida, feroz e lírica, foi agarrada pelo júri da competição de Veneza. Mais importante do que os pombos embalsamados do Leão de Ouro.

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“A Pigeon Sat on a Branch Reflecting On Existence” de Roy Andersson é o pombo embalsamado – Leão de Ouro da 71ª edição do Festival de Veneza, atribuído sábado à noite do Lido. A existência está no resto do palmarés.

Sem ironia: belo conjunto de prémios aquele que foi desenhado pelo júri presidido por Alexander Desplat se tivermos em conta o que pode acontecer durante a soma dos afectos ou empatias de nove pessoas para se chegar a uma lista – os outros jurados eram os actores Joan Chen e Tim Roth, os realizadores Philip Groning, Jessica Hausner, Elia Suleiman, Carlo Verdone, a escritora Jhumpa Lahiri e a figurinista Sandy Powell. Se tivermos em conta que de um filme coroado com o prémio máximo alguns esperam que “signifique” qualquer coisa, que seja “sobre”, que dele se destaque um efeito de autoridade.

A Pigeon Sat on a Branch Reflecting On Existence, encerramento, depois de Songs from the Second Floor e You, the Living, de uma trilogia do cineasta sobre o que é “ser um ser humano” – anuncia o sueco Roy Andersson no início – é esse tipo de coisa. É um filme que quer “representar”: o sofrimento humano, o património de violência e de barbárie, a culpa do mundo… Fá-lo através de planos fixos, uma série de mundos que são hermeticamente selados apesar de haver, em fil rouge, a odisseia de uma dupla trágico-comico de vendedores ambulantes – dentes de vampiro é a novidade deles.

É uma versão congelada do palhaço, numa edição do festival que teve propostas vibrantes de clowns em filmes menos autoritários: o Michel Houellebecq ciclista de Near Death Experience, de Gustave Kervern e Benoit Delépine (secção Horizontes), ou o Benoît Poelvoorde chaplinesco de Le Rançom de la Gloire, de Xavier Beauvois (concurso). Os sketches de Andersson – ele não consegue afastar o fantasma dos Monthy Python, em encontro com Bergman – reiteram o mesmo. Chega a parecer que o pessimismo é um meio para chegar a um fim cómico. A meticulosa mecânica formalista parece ser o movimento, a moral – em “quadros” como o de um Holocausto humano isso incomoda. “Académico”, chamaram a A Pigeon Sat on a Branch Reflecting On Existence alguns; para outros foi a consagração de um realizador “de culto”. É as duas coisas.

É como se A Pigeon Sat on a Branch Reflecting On Existence não progredisse desde aquele quadro inicial em que um casal observa pássaros embalsamados no museu: fica-se à espera da possibilidade de um contraponto, e nunca acontece, é um one man show do quadro.

O movimento em que os olhares se encontram, o do filme e o do espectador, faz o silêncio de The Look of Silence, de Joshua Oppenheimer (Grande Prémio do Júri). É o momento aguardado pelo desamparo que causava The Act of Killing (2012). Não é, por isso, uma sequela do filme anterior. Isso seria qualquer coisa que vinha “depois de…”, quando o cruzamento com o olhar das vítimas dos esquadrões da morte que assassinaram um milhão de indonésios nos anos 1960, e a experiência desse silêncio, era um gesto moral necessário depois da histerização selvagem dos actos assassinos que os próprios reencenavam, como action heroes, em The Act of Killing – filme que corria o risco de matar a vítima uma outra vez sem The Look of Silence.

É aqui que o júri da 71ª edição se mostrou um conjunto de tipos em movimento: The Postman’s White Nights, do russo Andrei Konchalovski, foi o Leão de Prata para Melhor Realizador, Sivas, do turco Kaan Mujdeci (na foto), foi o Prémio Especial do Júri. Não interessa a hierarquia das distinções, interessa que os objectos foram identificados e que há um mundo que neles se revela. Sem quererem saber ou explicar qual o momento em que o documentário passa a ser ficção ou em que a ficção se alimenta do documentário, sem se importarem com essa demarcação, interessam-se pelo pacto com as pessoas que filmam: não-actores que sem o saberem interpretam-se a si próprios.

Kaan Mujdeci deixa-se levar pelos círculos concêntricos que um miúdo organiza para se afirmar e ao seu cão de combate na arena social – ele é que é o animal feroz de um filme que, devido ao realismo das sequências de combate com animais, perturbou o refúgio de conforto que alguns procuram nas salas (mas é bom quando um filme violenta). Tão feroz quanto ele é Romain Paul de Le Dernier Coup de Marteau (prémio Marcello Mastroianni para um estreante): um adolescente que encontra para si um papel no melodrama familiar destruído e na luta de classes, progredindo da roulotte onde vive com a mãe doente para uma varanda teatral com vista triunfante sobre a cidade – a linhagem dos jovens obsessivos dos Dardenne ou do Jean-Pierre Léaud inaugural de Os 400 Golpes de Truffaut.

E depois houve The Postman’s White Nights, o mais belo filme de todos os da competição, com o suplemento de beleza de ter chegado no último dia, quando menos o viram e quando ninguém estaria à espera desta possibilidade de panteísmo renascido das cinzas, de vida, depois do fim do cinema épico, depois do “romantismo socialista”, com uma galeria de personagens – habitantes de uma aldeia perdida na Rússia que, mais uma vez “sem o saberem”, se interpretam a si próprios – de estirpe orgulhosamente clássica.

Estas palavras de Philip Gröning, um dos jurados (é realizador de O Grande Silêncio), depois do anúncio do palmarés, interessam: “O cinema está a mudar, e os prémios reflectem essa mudança”.

O palmarés de Veneza não ficou embalsamado.