De pé sobre um palanque que lhe confere uma posição dominante sobre o “vucuvucu” da Rua Direita, Supertripa levanta os braços e grita “vai descolar, vai descolar, vai descolar”. Vestido com um fato que o transforma num personagem a meio caminho entre o Super-homem e o Homem-aranha, óculos escuros que lhe sublinham um sorriso de moleque, Supertripa gesticula com uma mão, agita um cartaz com a outra, meneia-se, ri-se, fala ainda mais alto e consegue as atenções da pequena multidão que enche a rua estreita do zona central do Recife. Com os pés na terra, um outro rapaz grita a um microfone que a Narciso, loja para a qual ambos trabalham “é imbatível”, que tem blusas, vestidos e capas de sofá a nove reais e noventa, que “eles”, os patrões, “vão trazer liquidação para nós”. Supertripa corrobora com a promessa da sua partida para o espaço, agora que “está sendo filmado, está sendo filmado”.
Divertido, o rapaz sente-se na pele do herói da sua rua, torna-se mais confiante, chega a ser ousado. À porta da Narciso, alguns e algumas colegas de trabalho divertem-se com a cena, os transeuntes criam uma clareira em frente à loja, por um momento a lengalenga repetitiva do rapaz do microfone parece ser capaz de fazer parar o “vucuvucu” (expressão que designa aquela zona do Recife onde as pessoas andam em permanente movimento). “Ele vai voar, olha aí, ele vai voar”. Supertripa, cujo verdadeiro nome é Ítalo Hugo, não voa, mas paira, vaidoso, sobre as cabeças que fazem da rua uma mancha contínua.
Andar num sábado de manhã pelos bairros de São José e Santo António do Recife onde subsistem imponentes igrejas do tempo colonial, casas burguesas dos primórdios do século XX, lojas comerciais e um catálogo interminável de edifícios devolutos é uma animação. Claro que o Supertripa das lojas Narciso é um super-herói sem rivais. Mas para se ouvir teve de recorrer ao palanque e ao fato vermelho e preto que faz o seu personagem. No meio da gritaria, a Narciso grita mais alto e até muito para lá da sua zona de influência apagou o grupo de vendedores que, num ritmo acelerado e num registo monocórdico e repetitivo, oferece “água mineral a um real”, as moças que apregoam brigadeiros ou suco de açaí.
Na rua Direita, onde os produtos e comerciantes chineses ganham espaço a cada dia que passa, vende-se um pouco de tudo a clientes de rendimento médio e baixo. No formigueiro vêem-se rostos, risos e gestos de convivialidade e de rejeição que são não só uma montra do nordeste, mas também do próprio Recife. Como a resistência da pobreza e do atraso. No meio da apologia do rapaz do microfone à Narciso, as funcionárias perguntavam-me se eu falava francês e, depois de esclarecidas, quiseram saber se “Portugal é Europa” (embora soubessem que Ronaldo é português).
Se comparativamente há uma década o Recife de hoje é uma cidade muito mais amigável, limpa e segura, ainda conserva sinais de decrepitude e de abandono que demorarão décadas a corrigir. Ainda assim, sabe bem andar por aquele bulício da Rua Direita e do barirro. Pelo colorido, pela diversidade, pela simpatia geral, pelo valor de um património que voltou a ser acarinhado e pelo show dentro do show de Supertripa. “Ele vai voar, ele vai voar, ele vai voar…”
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