1. A primeira vez que aterrei no Brasil, o presidente português chamava-se Jorge Sampaio. Foi há mais que outro século, quando os portugueses podiam não ter vergonha de quem tinham eleito, no Verão em que Diana de Gales morreu. Eu estava a acordar em Brasília quando ouvi a notícia. Nessa tarde vi Lula da Silva numa manifestação: tinha barbas negras, era um sindicalista. Roberto Marinho, o magnata da Globo, ainda estava vivo. Uma noite no Rio a comitiva de Sampaio foi recebida em sua casa. Lembro-me de serpentear por ladeiras abruptas de paralelipípedo. Disseram-me que aquilo era o bairro de Santa Teresa. Descendo, havia um portão, dentro um jardim, ao fundo um lago com flamingos. O Rio de Janeiro pareceu-me um escândalo: flamingos levantando voo contra um horizonte de favelas. Ninguém me disse que ali, no sopé de Santa Teresa, o bairro já se chamava Cosme Velho. Agora moro a dois passos dessa casa, o magnata já não está vivo, não sei o que aconteceu aos flamingos, há muito que não tenho notícias de Jorge Sampaio e esta semana conheci estudantes de jornalismo para quem Diana de Gales é tão longínqua quanto o tempo em que não havia Internet. Mas nesse tempo Chacal já era uma lenda do Rio de Janeiro. E aquele deus dos repórteres que o Adelino Gomes diz que existe, e eu tenho encontrado apesar de ser ateia, fez com que alguém me falasse nele antes ou depois da recepção de Roberto Marinho. O facto é que numa tarde de 1997 me sentei no chão de um apartamento da Gávea a conversar com um gato de olhos azuis chamado Chacal.
2. Ricardo Chacal. Quinze anos depois leio na contracapa de “Uma História à Margem”, o último livro dele: “Para o mundo acadêmico, sou um poeta descartável, de poucos recursos e baixo repertório. Para o mundo pop, um poeta, um intelectual, um crânio. E todos têm razão. Menos eu. Menos eu.”
3. Eu tinha um gravador de cassetes. Nada é mais remoto que um gravador de cassetes, enquanto o vinil está aí, na mochila dos garotos que nasceram depois da Internet e andam de bicicleta. Lembro-me do gravador pousado nos tacos do apartamento de Chacal, entre edições de “O Carioca”, a revista que ele fazia, formato A3, papel grosso e mate. Hei-de a ter algures em Lisboa, guardei-a como um antípoda das revistas de Roberto Marinho. Chacal falou-me de Paulo Leminski, Waly Salomão, Ana Cristina César, da poesia marginal naquela viragem dos anos 70 para os 80. E pôs-me ouvir Fernanda Abreu que tinha acabado de lançar um disco em que ele também metera a mão para escrever, e cantar:
No fundo da madrugada
No silêncio na calada
De repente foi chutada
Na batida
Começou a batucada
E o som seco dessa lata
Era um funk lá na lapa
Era o wailers na Jamaica
Um pagode na Nigéria
Era o morro em pé de guerra
Diz na lata chuta lata vira lata
4. Voltei a Lisboa com a voz de Chacal para passar na rádio, existirá algures no arquivo da RDP, se ainda existir RDP. Quinze anos depois entrei num sobrado do Centro do Rio de Janeiro, como aqui se chamam as casas de dois pisos, casa velha na esquina do Largo de São Francisco, alto pé direito, portas-janelas com varandim. Era o lançamento de uma colecção de poesia e de um livro sobre Hélio Oiticica de um tal Fred Coelho por quem nessa tarde nem dei. E lá estava Chacal, quinze anos depois, os mesmos olhos azuis, agora grisalho. Um dos livros era dele. Ele é do tempo em que a poesia sai pelos sete buracos da cabeça: actuou. Estava tão vivo como o vinil dos garotos. E continuava a morar na Gávea.
5. Fomos-nos cruzando aqui e ali. No fim de Julho fui ver a autobiografia dele. Um espectáculo também chamado “Uma História à Margem”. Ele e uma cabeça de minotauro. Ele e vinis de Lou Reed, dos Clash. Ele em cima de uma caixa com uma luz vermelha dentro a encenar a prisão. Ele com um gravador de cassetes igual ao meu de 1997. Ele e o Brasil que deus-dará, saindo pelos sete buracos da sua cabeça, a festa e o que estamos sozinhos no dia seguinte. A plateia dava para uns 20, éramos quase isso. Durou Junho, durou Julho, quem viu chorou. Ou tem buraco no peito.
6. Dias depois voltei lá, a esse Espaço Cultural Sérgio Porto onde Chacal actua há anos, desta vez à sala grande onde todos os meses acontece o CEP 20.000. Centro de Experimentação Poética, roda de poesia na boca. Eu tinha amigos em palco, família mesmo. Francisco Alvim veio dos anos 70, emocionante. Chacal dançou com a cabeça de Minotauro. Lembrei-me de Vinicio Capossela. Ovunque proteggi. A noite acabou com Angélica Freitas a ler poemas do seu novo livro. Ela tinha na cabeça o chapéu que o anfitrião Chacal lhe dera. Parecia saída de uma peça de Beckett. A sala, que transbordava, parou de respirar. Angélica cortou o tempo como uma lâmina. Esperem por esses poemas sobre as mulheres sujas. O Brasil merece esses poemas.
7. Então estou a escrever esta crónica no limite da revista ir para a gráfica, quinta-feira de manhã no Rio de Janeiro, à tarde em Lisboa, e esta noite são os 22 anos do CEP 20.000, ou seja há 22 anos que Chacal faz isto, arena de tudo, olhem só o convite:
“quer se entreter? deixar de se entristecer ? é só rumar para o espaço cultural sérgio porto, no humaitá, rio de janeiro, hoje às 20:30. bárbaros de todos os meridianos, de todas as latitudes, farão o impossível para tirar você do sério. o cep vinte mil faz 22 anos e quer te dar esse beijo. um brinde aos ricos de espírito. a vida é curta pra ser pequena. boralá !
20:30: batalha do passinho: emílio domingues. chacal. farani cinco três.
ana schlimovich. tiago malta. madame kaos. beatriz provasi. marcela gianinni. juliana holanda. arnaldo brandão. fausto fawcett. tavinho paes.
gringo carioca. caio paiva. ítala ísis. marilene vieira. tereza seiblitz e rosa douat. mariano marovato. augusto guimaraens. lucas viriato. cristina flores. estrondo.alicesant’anna. gregório duvivier. marília garcia. chacal.
marcelo montenegro. fábio brum. luana vignon. éber inácio. botika. gabriel mayall. macumbaião. bernardo palmeira. pedro rocha e vc.”
Fiz paste do Facebook porque podia ser um poema para dizer alto. Também acham o Chacal lá.
(Público, 2-9-2012)
fui lendo e sorrindo.
grande “Carioca”!
alexandra, que delícia. ler seu texto. fui me lembrando da vida, do gravador, de vc sentada no chão do meu apê, e seus cabelos negros e sua simpatia. sempre bom te encontrar. aqui em qualquer lugar. beijo, chacal
Alexandra,
Isso é só para te dizer ( ou melhor seria dizer-te?) o seguinte:
Ler suas crônicas me faz imensamente feliz.
Porque de repente me lembro que ler , coisa que faço mais por compulsão do que por qualquer outro desejo mais nobre, pode elevar o espírito e ser fonte de inspiração para enfrentar as chatices do dia .
Agradecido.
Olha eu neste blog, obrigado pela citação!