1. Era uma canção escrita por um desenhador e estava a ser cantada por uma mulher com um peixe na cabeça, todos tínhamos bebido uma poção azul, alguns acabaram frente à praia. Coisas que só acontecem no Rio de Janeiro, como ver nas traseiras de um carro Jesus — Que amor é esse?, ao fundo um céu amarelo, uma placa a dizer Caju, Niterói, Avenida Brasil. Pois em que outra cidade um desenhador escreveria Homem / é tão bom para uma mulher com um peixe na cabeça cantar, e quem canta homem canta mulher.
2. Entre Portugal e Brasil há 145 países de diferença quanto a felicidade futura. Soube disso nesta semana em que ouvi ao vivo as canções de Letícia Novaes e Lucas Vasconcellos num palco de Ipanema, cruzadas com desenhos ao vivo de André Dahmer e poemas ao vivo de Bruna Beber, e nessa mesma noite, bem mais tarde, um sushiman de Copacabana simplesmente quebrou o talo de um espargo com o polegar quando lhe perguntei como saber qual o ponto certo onde cortar.
3. Foi o economista Marcelo Neri quem me falou no Índice de Felicidade Futura. Ele elaborou um ranking para a Fundação Getúlio Vargas a partir de dados de 158 países em que os inquiridos dão notas de 1 a 10 à sua vida dentro de cinco anos. A nota mais alta é a dos brasileiros: 8,6. Ou seja, em nenhum país há gente tão optimista quanto ao futuro próximo. Já Portugal, aparece em 146º lugar com uma nota de 5,2. É verdade que os sírios, por exemplo, conseguem ser mais pessimistas, mas creio que as tropas de Assad já davam cabo deles quando a pesquisa foi feita.
4. Sempre que abro a janela, e antes dela os olhos, e antes deles ouço a criação do mundo que são os pássaros nas árvores do Rio de Janeiro, penso como é difícil ser pessimista nesta cidade, e isso faz parte da nossa batalha privada. Eu, portuguesa, sempre a cair para o 146º sexto lugar da felicidade futura, antecipando a tragédia na próxima esquina, como diz a Maria que me mandou a fotografia Jesus — Que Amor é Esse? E o Rio com os seus morros empinados, como se tivesse acabado de brotar da terra, extravagância geológica e já luxuriante, mais jovem que a futura descoberta da vida em Marte, onde esta semana o robô pousou intacto ao fim de sete minutos. Nenhuma cidade é tão big bang como o Rio. O big bang ao sétimo dia, a descansar. Mais jovem só Caetano Veloso, que no dia seguinte ao robô fez 70 anos. Que semana.
5. No sábado mergulhei em Ipanema. Não contando com o Arpoador deve ter sido a segunda vez na vida. Era pleno Inverno, qualquer coisa como um Verão europeu. Água fria nos pés, boa a partir do mergulho. Que amor mergulhar diz outra canção dos Letuce, a banda formada pela Letícia e pelo Lucas. No espectáculo de Ipanema eles tocaram-na com polvos e anémonas nas costas, um filme no fundo do mar. Mergulhar no Inverno, na cidade em que moramos, a ver o Morro Dois Irmãos, está fora de competição.
6. Soube pelo jornal que no fim de Copacabana, antes de chegar ao Arpoador, uma banca vende ostras frescas por 3,5 reais. A imprensa carioca é uma imprensa local, lemos coisas assim, sobre o que podemos encontrar no calçadão amanhã. No caso das ostras, basta não chegar depois do meio-dia. Não vinha no jornal, mas o sushiman de Copacabana compra os espargos no Cadeg, o mercado central do Rio, onde há semanas encontrei o Alto Minho a dançar com Trás-os-Montes aí em Agosto de 1976. Bigodes como os meus amigos cariocas de agora gostavam de ter. E qual será o Índice de Felicidade Futura de um português quando vive no Rio de Janeiro pelo menos desde 1976?
7. Também há um Índice de Felicidade Presente em que o Brasil aparece no 22º lugar. Portanto, a vida, que já é esta, que já é aqui, boa por já ter sido dura, melhor por já ser boa, vai bater 21 adversários em apenas uma mão-cheia de anos, acredita o brasileiro, graças a algum Deus. De qualquer forma, Deus será carioca.
8. Todas as semanas há um momento em que sei porque moro no Rio, mas esta semana soube que ia continuar a morar no Rio. Devemos morar em cidades que nos contrariam. No presente parece que nada está a acontecer, mas um dia, no segundo que leva a quebrar o talo de um espargo, sabemos que já não somos o mesmo. A natureza da cidade exerce uma pressão tectónica sobre a nossa natureza. Tudo está ser mexido milimetrica e irreversivelmente. E os continentes afastam-se.
9. Bebi a poção azul duas vezes, porque fui ouvir as canções com desenhos e poemas duas vezes, porque tudo isso era dirigido pelo Marcio Debellian, o meu marinheiro favorito, aquele que aos seis anos foi largado na Baía de Guanabara com dois chokitos de mantimento. Mas não acabei frente à praia, na mesa do Fiorentina onde o dono disse ao Marcio que pode saber o que aconteceu nos bastidores de um espectáculo pelo estado geral de uma mesa. O que ele via na mesa das canções com desenhos e poemas era gente feliz por ter terminado a terceira e última noite sem vontade de parar. Eu podia dizer o mesmo da minha terceira noite, que não será a última, e não estava no Fiorentina.
(Público, 11-8-2012)
Oi!
Passo por aqui com alguma frequência, sempre com muito prazer. Escrevo de lado de cá. E ando sempre atenta a olhar os lançamentos recentes, à procura. É que estou quase a terminar a sua jóia, que de tão deliciosa a ando a fazer render para aí há um ano. Só que está quase no fim. E então preciso de saber. Para quando o “Viva Brasil”?
Cumprimentos lisboetas
catarina
Pois é, Alexandra, parece que está a beber a doçura da terra. Como disse o grande poeta Noel Rosa, “já passou de português, é brasileiro”.
Muito boa a reportagem. Acho que é a melhor reportagem que li sobre as mudanças sociais no Brasil na última década. Parabéns!
Ótimo. De novo.