1. Sento-me com uma amiga a almoçar em Lisboa e ela conta-me que está a viver com 300 euros por mês. Transfere-os todos os meses da conta-poupança para a conta-corrente. Isto é possível porque, aos 35 anos, continua em casa dos pais, no seu quarto de rapariga, onde agora tem o computador, primeira coisa que liga todas as manhãs. Vive com muito pouco e sente-se uma sortuda por ter bom ambiente familiar. Durante anos aguentou-se num emprego que detestava, largou-o finalmente para tentar escrever e traduzir. Da escrita ganha nada, a tradução varia entre sete e oito euros e meio por página. Um livro de tamanho médio, que lhe leva três meses de trabalho, representa mil e tal euros de remuneração. É assim que a literatura estrangeira está a ser traduzida em Portugal. À custa desta falta de alternativa.
2. Sento-me com outros amigos em Lisboa que escrevem, entre outras coisas, algumas penosas e mal pagas, algumas nunca pagas, milhares de euros ao ar. Não vem da crise, é uma exploração antiga: escrever não é trabalho e o tempo de quem escreve não é tempo. O tempo dos gestores é dinheiro, como o dos canalizadores, mas quem escreve não paga luz, não tem fome, não tem família, não precisa de seguro, de segurança social, nem, mais à frente, de pagar o funeral. Uma espécie de sobrehumano ao serviço da cultura. Portugal é assim um país de poetas ricos, escreveu Nuno Moura, poeta que podia dizer sobre isto o que nem imagino.
Em Portugal, poetas e prosadores são certamente tão ricos que não precisam de ser pagos quando vão daqui para ali, e fazem textos para colóquios, para revistas, para jornais, e são chamados para debates, para badanas, para prefácios — montras, em suma, em que se podem mostrar e de que portanto beneficiam. O que escrevem não tem preço e o tempo deles não se mede.
— Não há dinheiro que me pague — remata aquele meu amigo que nem quando cede ao sarcasmo deixa de ser o mais elegante.
3. Porque somos um país de poetas ricos e elegantes. Morremos à fome mas com elegância. Depois toda a gente lamenta e entretanto é de bom tom não falar naquele assunto a que João César Monteiro chamaria o dinheirinho.
Por pudor perdemos a vida. Não é digno, é só obsceno, gente que não sabe como viver amanhã, que todos os dias sabe o que perde, que não está a fazer o que tem para fazer aqui. E aqui é um lugar cada vez mais pequeno, onde os cidadãos elegem um governo e esse governo depois os manda emigrar, como se a sua única razão de ser não fosse servir os cidadãos.
4. Entre o fim dos anos 1990 e o começo de 2000, este país pareceu acreditar que talvez lhe coubesse fazer algo pela sua literatura. Quebrando o protocolo do pudor, o então instituto do livro ousou instaurar bolsas de criação literária. Portugal foi país-tema de grandes feiras internacionais em anos sucessivos: Frankfurt 97, Rio de Janeiro 99, Paris 2000. Pelo meio houve o Nobel para Saramago, 98. As traduções portuguesas explodiram — e é com o dinheiro das traduções, mais que dos direitos em Portugal, que os escritores conseguem, enfim, pensar nessa coisa extraordinária: viver da escrita. Muito do que agora está a ser colhido foi plantado então. Vejam os nomes de quem recebeu essas bolsas.
5. Para muitos escritores, uma bolsa paralisa, constrange, cada um saberá de si. Mas a possibilidade tem de existir para quem quiser recorrer a ela. Devia ser dever do estado, governo central e autarquias. Mais, num país como Portugal, que pouco melhor tem para oferecer que os seus criadores, devia ser uma estratégia.
6. Sento-me com outra amiga em Lisboa e ela conta-me que recusou idas e vindas e textos por não serem pagos, mas que isso não constituiu problema para quem a convidava, porque havia sempre gente para aceitar — como agora há cronistas a escrever de graça.
Eu vejo duas boas razões para escrever de graça. A primeira é quando alguém próximo nos pede. A segunda é quando reverte a favor de quem precisa. No primeiro caso trata-se de amizade, no segundo de voluntariado. O resto chama-se abuso.
O abuso não só perpetua o estado das coisas como o acentua. Cada vez que alguém acha natural não pagar a quem escreve está a dizer que a literatura é acessória, e a contribuir para que ela desapareça.
7. Em 2012, o Brasil está a viver plenamente o que Portugal julgou viver há 15 anos. Em 2013 será protagonista na feira de Frankfurt, a maior do mundo, prepara inúmeros programas paralelos e não é por acaso: nos últimos anos, os incentivos a quem escreve multiplicaram-se. Além do apoio às traduções, as embaixadas do Brasil pelo mundo convidam escritores brasileiros para encontros locais, de Washington a Istambul. Dentro do Brasil, governo federal, estados e municípios promovem bolsas, festivais, residências, edições ou turnés. As instituições habituaram-se a pagar pelo que pedem mesmo que se trate da divulgação do último livro do autor. Pagam o tempo que ele podia usar para escrever.
O resultado disto é que mais do que uma geração de escritores brasileiros emergiu, os mais velhos largando empregos, os mais novos não tendo que os arranjar. As compras governamentais às editoras, para alunos e professores, reforçam substancialmente muitos direitos de autor. E tudo o mais tende a ser pago: escrever uma badana, um prefácio, ir a um colóquio, a um festival.
Muita gente talentosa fica fora deste circuito e falta fazer quase tudo: ler no Brasil ainda é um luxo de poucos; fora best-sellers, as tiragens são baixas; as boas livrarias estão concentradas no eixo São Paulo-Rio. Mas, num momento em que tudo parece crescer no Brasil, há muitos estímulos públicos e privados para que a literatura também cresça.
A Petrobrás tem bolsas de criação literária anuais. Não sei de nada remotamente semelhante em Portugal. A PT criou um prémio literário enorme para autores lusófonos com obra publicada no Brasil. E quem não chega a publicar no Brasil? Bolsas e residências literárias regulares, conhecem?
8. A crise podia ser o começo e não a precipitação do fim. De um governo que acha natural despachar cidadãos para o estrangeiro não vejo o que se possa esperar. Mas talvez pudéssemos começar por perder o pudor, porque vergonha é que quem convida não fale em dinheiro, indigno é partir do princípio de que os escritores dão o seu trabalho, a única coisa pela qual podem ser pagos.
(Pùblico, 18-3-2012)
agarrai vos as inchadas ide trabalhar malandros
Este senhor não sabe o que é Literatura, aliás, até o português foi descuidado em alguma parte do seu ensino. Enxadas, porque inchadas andam muitas pessoas…
Tenho de descordar consigo quanto à opinião Angela (eu hoje estou do contra… ou pareço). Repare a total ausencia de qualquer tipo de pontuação ou hífen. O caso deste senhor não é saber ou não. É (e desculpe-me o português mas não encontro melhor expressão do que escatologia) estar se a cagar para como escreve. Na minha opinião é um caso bem mais grave. Quem não sabe é por não aprendeu, e quem ignora é porque não quer saber. (e sejamos lógicos… se este senhor sabe comentar o tópico, então de certeza que deve der no mínimo a 4ª classe).
Dá-lhe Josué que és ignorante, mas és feliz… Oxalá que nunca percas as palas que tens nos olhos senão podes perceber que o é que andas a perder e depois é mais tramado.
Um abraço para a Angela!
“Morremos à fome mas com elegância.”
Discordo absolutamente.
Por cá somos uma multidão de matrafonas e de coirões.
Vale a pena ir a Copenhagen (haverá outras partes do mundo, possivelmente com condições materiais bem menos favoráveis, onde isto será igualmente apreensível, mas falo do que conheço melhor) ver o que é gente elegante sem consumismo compulsivo: desde as crianças aos velhos, todos têm uma dignidade que levanta as cabeças, evita arrastar de pés, afasta o suborno, valoriza a cultura (do corpo, do intelecto e do espírito) e celebra o talento.
Já nem sequer menciono a/o/s velha/o/s (ou os adolescentes) de Florença ou de Paris, que são mais que elegantes, são “exquis”.
À Maria Cardoso: Desculpe de a interpelar, mas o MEC (Miguel Esteves Cardoso) disse uma vez uma frase que me marcou bastante: “´Só há um povo que não gosta dos portugueses: São os Portugueses.” Olhar para “fora” e lá procurar exemplos é um resultado social do isolamento que Portugal sofreu durante a segunda metade do século XX. Nós temos coisas boas, pessoas boas, Portugal tem de tudo. Mas nunca vamos ser uma Holanda, uma Suíça uma Florença. Isso são identidades de outros países… São modos de outros países e Portugal tende a esquecer-se que tem uma idêntidade própria. E não falo de Pastéis de Belém nem turismo… É óbvio que sofremos influências, mas a identidade sempre se manterá. Estou a falar de riqueza cultural até ao nível do saber (um bom exemplo é a agricultura onde toda a experiência acumulada pelos nossos antepassádos se começa a perder em normas europeias, porque certas pessoas acham que os países são todos iguais). Somos todos diferentes, nem bons nem maus… só diferentes. Já agora, sou um técnico de som de 33 anos… desempregado. Esta é a minha maneira de ver Portugal.
Só uma pequenina adenda… A meu ver, se um português se arrasta, é porque de certeza que anda cansado disto tudo, e se anda de cabeça baixa é porque talvez tenha em muito que pensar… dívidas, o que vai comer amanhã, tentar não pisar presentes no passeio (em lisboa é o mais normal… portugueses de cabeça baixa e não estou a gozar.) Até a limpeza da rua influência a relação das pessoas. Não olham umas para as outras… olhamos para o chão, falamos para dentro, estamos aqui, e poucas vezes se lembram de nós… Mas isso não nos faz nem nunca nos fará menos dignos. Essa palavra, “dignidade” tem vindo a perder credibilidade, pois aqueles que se dizem “os mais dignos” são os mesmos que nos têm levado à ruina em proveito próprio de interesses. Nem falo de cores políticas, porque as cores debotam e a maioria dos deputados tende a misturar a “roupa (suja) escura” com a “roupa (suja) branca” e normalmente anda sempre tudo debotado.
EPÁ ISSO É COM TODOS OS PRÓPRIOS INIMIGOS DE SI PRÓPRIOS SÃO OS MESMOS COM OU EM TODOS OS PAÍSES SE PODE DIZER ISSO POIS O É TAMBÉM E NÃO ME DIGAS QUE JÁ NÃO SABIAS DISSO
20 valores, Alexandra! Não é necessário comentários, está lá tudo!
Gostei. Faz-me pensar sobre todo o “investimento” escolar que foi cavalo de batalha do Governo de Portugal nos anos pré-crise (de 2008) estão a ser afogados em Inutilidades? Para quê investir na educação se depois não dão meios aos “educados” para exercerem a grande força (mais do que força laboral, social, etc & tal) que é reflectir, raciocíonar e pensar. É essa parte que falta. Criamos autómatos. E aqui, meus amigos, ninguém está isento de culpa. São os media que parece terem perdido a responsabilidade social (que a têm – não é só para fazer dinheiro. São as notícias – por exemplo – que muitas vezes são temas de café. Agora há notícias que já ninguém comenta – aqui fala o empirismo – Um bom exemplo são as notícias da Faixa de Gaza e arredores. Eu oiço / vejo a mesma notícia desde que me lembro, e( sendo sincero, já nem ligo). É a população porque também perde o interesse em pensar porque custa e nada os estímula… E (o suspeito do costume) o Estado que tenta aculturar o país no sentido inverso. ‘Bora aí trazer a Ópera de Moscovo (mas esqueceram-se de que a maioria das pessoas não gosta de ópera porque basicamente não percebe nada do que se está a passar.) É muito melhor investir em Futebol que é também ele cultura, e… mandar uns filmes a Cannes e tal (daqueles que pôem o mundo pseudo-intelectual a delirar, mas depois esquecem-se que os pseudo-intelectuais acabam por se tornar autistas porque vivem num portugal dentro de Portugal, mas que o “Zé Povinho” não os entende). E então na literatura nem se fala… Uma das Livrarias mais emblemáticas de Lisboa fechou e ninguém fez nada. Uma Biblioteca Nacional que parece ter um sistema de segurança á porta digno de um Aeroporto (pelo menos no meu tempo era assim, mas é obvio que as pessoas não lêem – só a trabalheira que dá lá entrar. Eu não digo que toda a gente vá ler daqueles livros que se mexem com luvas mas, também não era preciso tanto) Mesmo as empresas (as chamadas ancoras comerciais) que até dispõem de sitios para os clientes se sentarem e lerem, acabam por relegar o autores (novos) portugueses para zonas estranhas dos escaparates. E por vezes é pior. Eu tenho andado, há pelo menos 4 anos, à procura de uma edição da História Trágico-Maritima (de Bernardo Gomes de Brito – A curiosidade adveio do albúm do Fausto, Crónicas da Terra Ardente) e, pasme-se não há… Não se edita. (eu sou um bocadinho estranho e gosto de guardar os livros que leio, por isso a biblioteca para mim, só quando preciso de procurar alguma coisa muito específica – acho que a ultima vez que entrei numa foi em 98 e foi na B.N.) No minimo vergonhoso. (quer dizer, não se encontra editado é a informação que as livrarias me dão). Existe uma versão do brasil. E aqui fica o meu comentário que já se estende por largar linhas. Obrigado pelo Artigo.
Futebol não é cultura nem Cultura e muito menos cultura geral ou Cultura Geral mas sim um desporto e o problema de portugueses ainda afirmarem isso está em lhes ter sido incutida essa ideia pelo “governo” , políticos , dirigentes desportivos etc que nos querem mentir e mentem a toda a hora , enganar para distrair e roubar é a política deles .Cambada de corruptos .
Em portugal,”escrever, que maçada. O prazer será algum, mas benefício é quase nada”. Parabéns admirável Alexandra, e não desistas.
Parabéns, Alexandra, é mesmo isso. E eu sei bem do que falas… Um abraço
excelente crónica.
nunca percebi porque razão se desvaloriza tanto o trabalho criativo.
ou se calhar sei, uma boa parte do povo português não percebe o verdadeiro significado da palavra Cultura, não passam de “iletrados” (sem culpa formada) que apenas se cultivam com a televisão, porque isso sempre deu jeito aos políticos mediocres que temos.
é que um povo Culto normalmente sabe o que quer.
Pingback: «Escrever de graça», por Alexandra Lucas Coelho | Caderno da crítica
Povo culto ,o português?deixa-me rir.O português comum não gosta de cultura,o português em geral é bom apenas para ir a bares beber cerveja,sentar no sofá para ver a novela da noite, e falar com o vizinho sobre a vida alheia.é nisso que os portugueses são bons.
é um poço sem fim.
este país Portugal primeiro tem de nos cansar muito muito ao ponto da exaustão, até que se consiga alguma coisa. é uma espécie de teste de resistência, de tortura chinesa. entretanto emigra-se mesmo pq se perde a paciência e lá fora é tudo tão mais possível: é o Brasil do “vai dar certo” é a europa do mérito, são países africanos do “está tanto por fazer”.
ao voltar, não somos levados muito a sério, nem se tem em consideração a experiência acumulada – só se se tivesse mantido por aqui no “circuito” das pessoas certas.
é preciso começar a denunciar: este ano tive a sofrível oportunidade de trabalhar 4 meses para uma revista que nunca pagou salários, nem à equipa nem aos colaboradores, convidados por nós, sendo que tem repercussões gravíssimas pessoais e profissionais. e foram mentiras atrás de mentiras, até a um irremediável silência, da parte do responsável. estou a falar da The Printed Blog Portugal.
Tb fiz muitas traduções a esses belos preços q falas, sendo que uma página demora mais do que uma hora, é humilhante a miséria q resta. (até miguel serras pereira, grande tradutor do país, trabalhava por vezes 14 horas por dia para fazer um ordenado aceitável).
e cronicas e reportagens não pagas. e perder mais tempo a cobrar dívidas do que a ler o jornal.
e todo um risinho desprezível quando se diz ao telefone “agora não dá, estou a trabalhar”, e se o trabalho é escrever, ouvir-se do outro lado: “podes sempre fazer isso no tempo livre”.
apesar do que se semeou nessa altura mais gloriosa para a literatura (q ainda presenciei, como o salao do livro de 2000, com hermínios e escritores boémios e críticos entusiastas), nada ficou para os próximos.
nem há interesse em valorizar projectos que incentivem a leitura, escrita, conhecimento e partilha transnacional (como o Buala q, apesar do serviço público que presta, nenhum instituto público da língua ou cultura apoiou).
obrigada Alexandra por levantares este tabu tão bem descrito!
um beijo
“mais direitos para os as grandes empresas!”, exigiam os accionistas, ansiosos pela próxima OPA.
“mais dinheiro para o povo!”, berrava o sindicalista, na cassete que o mantém no palco e aos poderosos no poder.
“mais dinheiro para as letras!”, escreviam os escritores, cobiçando a fama de Frankfurt e esse lugar na grande literatura.
“…e deixarmos de pedir?” – gritou de repente a rapariga nas ruas. “e se lhes tirarmos o dinheiro em vez de lho pedirmos? e se partilharmos em vez de competirmos? e se pudermos ser todos músicos e poetas e pintores? e se ninguém tiver de viver da escrita, mas qualquer um possa viver do que escolher?” e ia continuar, a rapariga – quando a polícia lhe abriu a cabeça à bastonada. da testa o sangue, da boca ainda a tristeza:
“um escritor que exige escrever por dinheiro não terá perdido a capacidade de sonhar?”
accionistas e sindicalistas, jornalistas e escritores, sentenciaram mais tarde num estranho coro:
“era uma radical”.
e em coro seguiram seus ofícios.
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