O assistente de Vik Muniz abre a porta. Não é exactamente a casa de Vik Muniz, embora seja de Vik Muniz. Um quarto andar frente à praia de Ipanema. A entrada desagua num salão inteiramente branco, janela de parede a parede. Sai o assistente, entra o artista, camisa Lacoste, jeans, ténis, olho azul: um rapaz de 50 anos, excepcionalmente simpático. Abre a janela ao meio para mostrar o mar. Ela desliza sem atrito. Uma boa janela, com bons vidros, por causa do trânsito. “Vidros de aeroporto”, diz ele, como quem mostra os seus brinquedos. Depois senta-se no sofá lateral, deixando a vista à visita. Vai a Lisboa inaugurar a retrospectiva da sua obra no Museu Berardo e esse é o pretexto da entrevista. As paredes em branco são para que nada concorra com o mar. O quarto andar é para ver tudo o que vale a pena: calçadão, praia, mar, céu. Vik Muniz procurou uma casa assim durante dois anos.
É um homem de metas. Ser o artista plástico brasileiro mais bem sucedido no mundo não acontece por acaso, sobretudo quando se nasce na favela. E talvez por ter nascido na favela ele saiba o que os seus vizinhos de Ipanema nem sonham, por exemplo que o pescador da laje em frente se chama Chico.
E esta é só uma casa onde Muniz vem de vez em quando. Quando está no Rio mora com a sua actual mulher no Leblon. Depois há a casa de Nova Iorque, uma quinta em Minas Gerais, e agora uma casa no Alto da Gávea, próxima já da favela da Rocinha. “Venho de uma favela, então para mim não tem problema”, diz. “É a casa mais linda que já vi, feita por um discípulo do Lúcio Costa. Muita pedra, muito Frank Lloyd Wright. Estou apaixonado por ela. Vai ser a casa p’ra mim morrer ali.”
É assim que ele fala. E sorri.
E esta casa? “É um lugar bom para ficar pensando, ler um livro, mas é bastante asséptico. Gosto disso também. Quando vou para Nova Iorque mando brasa, trabalho, trabalho, trabalho.” Nos últimos 29 anos morou sobretudo em Nova Iorque. Foi de lá que conquistou o mundo. Agora está a voltar para o Brasil. “Passo 10 a 12 dias em Nova Iorque e o resto aqui, quase todos os meses. Viajo só com um iPad, sem roupa, sem mala. Adoro fazer isso. A coisa mais gostosa é só ter um passaporte. Meu plano é criar uma situação em que a parte mais intelectual do trabalho se desenvolve no Rio e a impressão e ampliação continuem sendo feitas entre Nova Iorque e Paris.” Para trabalhos em grande escala tem um armazém na periferia do Rio (junto à favela de Parada de Lucas), e está a construir uma ponte que permita fotografar de cima.
De repente levanta-se. “É a batida do coração da minha filha.” Gravou-a numa ecografia para usar como toque do telemóvel. A mulher está grávida de quatro meses.
“Na América as pessoas são muito pragmáticas e directas”, diz, ao voltar, com o telefone na mão. “Já com o carioca, tudo é emocional, tudo tem que ter uma conversa. O Rio é um lugar onde todo o mundo é VIP. Aqui, você lida com a personalidade o tempo todo. A trama social é muito complexa, o que faz do carioca um grande conversador. Ele anda na rua, bate papo com o cara que vende coco. É uma cidade muito rica, mas a vida é muito boa aqui para você perder tempo trabalhando. É uma vida muito contemplativa, você está sempre interagindo com a cidade. O trabalho que faço tem uma grande necessidade de isolamento e no Rio tudo está misturado, trabalho e social, o que é uma bagunça, mas é uma delícia.”
Morre de saudades daqui quando está lá e vice-versa.
Quando partiu do Brasil tinha 21 anos. Era um garoto pobre a sair de uma ditadura. “Tinha aprendido esse cinismo de que você não pode confiar na informação sem um grande discernimento. E esse uso de metáforas e códigos de quem não pode comunicar directamente.”
Crescido na periferia paulista, colaborara no Rio com a trupe teatral de Asdrúbal Trouxe o Trombone. Partilhava com eles um cansaço da arte politizada. “Eles estavam mais preocupados com uma arte independente do seu contexto, e com uma pobreza de meios. Ver um rio em baldes de água. Criar um projecto de ilusionismo no mais pobre possível. Isso nunca saiu de mim. Até onde você consegue iludir alguém? Você está provando ao espectador que ele precisa de ser iludido.”
Em 1982 foi para os Estados Unidos com intenção de estudar inglês por seis meses. “Me apaixonei por Nova Iorque e decidi que queria morar ali. Comecei a fazer cursos de direcção e cenografia de teatro mas logo me desencantei.” Caminhos demasiado alternativos que não eram seus. “É tão bom trabalhar com o que você já conhece. Não vejo necessidade de agredir a pessoa. É como agredi-la verbalmente. Esse tipo de vanguarda não me interessa.”
Foi empregado de bar e garçon, entre “outros empregos idiotas”. Morava na East Village, entre a avenida A e a Primeira. Mas já “desenhava desde pequeno, era bom de desenho”, e ia apanhando o que estava a acontecer em “galerias pequenas, do tamanho de uma banheira”, nesse frenético começo dos 80. “A primeira vez que vi Cindy Sherman foi um prazer.”
Em evolução
Anoiteceu. A batida de coração dispara de novo e é Roberta Medina, a Senhora Rock in Rio, que ajudou a realizar a exposição de Lisboa. “Foi instrumental, ela”, diz Muniz.
O que pode ser visto no Museu Berardo é uma retrospectiva em evolução. “Meu trabalho se desenvolveu de forma linear e até previsível. Como trabalho em séries, isso me permite aplicar o que aprendo na próxima obra. Não procuro grandes revoluções. Sou um artista evolucionário e não revolucionário. Pela natureza do meu trabalho gero muitas imagens de temas diferentes. É como se estivesse tentando montar um quebra-cabeças do que é a representação para mim, do que é uma imagem. Na retrospectiva, você tem desenhos microscópicas e fotografias astronómicas. Então você vê os parâmetros de uma exploração já com 25 anos.”
Não há obras vindas de museus ou coleccionadores. Todas pertencem ao próprio Muniz. “Elas estão sempre circulando. O intuito de levar o meu trabalho para o Japão, para a Rússia ou para Portugal é testá-lo em culturas diferentes. Mesmo no Brasil, ele é visto de forma diferente de cidade para cidade.”
Imagens icónicas do que se tornou o trabalho de Muniz, como as crianças sombreadas com açúcar, a Medusa de Caravaggio com restos de esparguete ou a Japonesa de Monet com ferramentas odontológicas.
Mas como a retrospectiva está sempre em evolução, a de Lisboa inclui imagens de séries feitas no mês passado, usando bocados de revistas. São fotografias de colagens ampliadas em tamanho gigante, em que “o papel assume uma escala quase escultórica”, diz Muniz. “O papel me fascina. Começa a ser visto como material, enquanto antes era visto como algo efémero. Depois de ter feito trabalhos com lixo comecei a imaginar lixo mental, coisas que guardamos mas não usamos. Nossa cabeça está cheia de lixo.”
Quando parte de uma imagem, o trabalho resulta em séries mais curtas. Quando parte do material, resulta em séries mais longas. “A ligação entre material e mental: a arte é isso. O artista trabalha na membrana que separa o mundo das coisas e das ideias, ou negoceia essa passagem, que é porosa.”
Como vingar
Mas entre os milhares de “wannabes” em Nova Iorque, vindos de todo o mundo, o que fez vingar Vik Muniz? “Sempre fui muito curioso. A perspectiva do mundo vista por um menino pobre brasileiro. A estranheza de viver num lugar como estrangeiro. Quando você se coloca numa posição em que tenta fazer parte de um lugar, isso é bom. Eu tenho capacidade de usar defeitos e desvantagens. O ambiente cultural em que me desenvolvi teve uma importância muito maior do que a escolaridade.” A herança da ditadura ajudou a torná-lo “elástico”.
“Não sou um artista que está querendo emocionar. Eu estou querendo mudar a maneira como vemos, ou dinamizar os rituais visuais. Por isso trabalho com imagens exaustas, gastas: ‘Espera aí, isso é uma outra coisa, olha de novo…’ Como se você ligasse aquela imagem de novo.”
A isso somou-se o seu “interesse enorme” por tudo. “Venho de uma infância com capacidade de se maravilhar. Vou para Nova Iorque e tudo é óptimo. Pego um avião e é óptimo, até comida de avião é óptima. Se eu tivesse ido para a Disney com cinco anos não teria essa capacidade de maravilhamento com tudo. Nunca perdi isso. Lembro-me de estar fazendo uma exposição numa galeria de Pittsburgh e estar nervosíssimo. Essa insegurança de depender da afeição do público é muito boa. Hoje já sei o que funciona, e sinto falta de sentir medo de ser rejeitado.”
Ou daquela primeira vez que viu Veneza ao entardecer. “Eu chorava que nem nené. Eu tinha 30 anos. Em Lisboa lembro de passar uma tarde no Castelo e a luz era a coisa mais linda do mundo. Eu adoro cidades. O campo me emociona, mas gosto de voltar para a cidade. Entrar no Prado pela primeira vez…”
Agora está com 50, e não vê muito mais tecto para subir. “O problema é que você sempre quer algo maior, e depois que você já fez tudo, o MoMa, o Whitney, representar o seu país na Bienal de Veneza… O que é legal é que você se livra de um monte de ilusões profissionais. A arte vai-se livrando dessas obrigações, vai-se tornando mais leve, mais pura. Você não tem mais aquela ambição que tinha, mas a arte é mais gostosa. Hoje eu não tenho mais pressa em ter exposição de museu, de galeria. Mas tenho saudades da época em que eu estava começando. O legal de uma retrospectiva é analisar uma trajectória. Você não vai só para ver as obras, você vai ver um artista.”
Genérico de novela
A retrospectiva que fez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 2009 foi o maior sucesso de sempre do museu, depois de uma exposição de Picasso. Muniz foi convidado a fazer genérico de novela. Sucesso de massas, entre reservas da crítica, no seu próprio país. A relação complexa de quem volta do mundo para casa.
“Saí muito pobre e voltei com sucesso considerável numa área de gente com muito dinheiro. O meu pai era garçon, minha mãe telefonista. A primeira vez que foram num museu foi para ver uma exposição minha. Eu tinha uma dificuldade de lidar com essas duas coisas: eles no meio de gente rica. Sempre tinha dificuldade de voltar e ter esse confronto. Eles também tinham um desconforto, e hoje estão superintegrados.”
Houve um clique que ajudou Muniz a resolver esse confronto de mundos. “Em 1999 comecei a trabalhar com projectos sociais em Salvador, e essa foi a porta. Nesses três meses trabalhei com crianças de rua, e em seguida comecei outros projectos engajados.” Fundou o Galpão Aplauso, com uma escola de artes, onde mantém aulas de fotografia. “Quando a Louis Vuitton me chama, passo o trabalho para os meninos e a gente faz junto. Hoje em dia me sinto muito mais à vontade. E comecei a me preocupar com a acessibilidade à arte contemporânea. Quando eu era garoto não sabia que era possível viver da arte. Eu tenho interesse em criar arte que seja extremamente acessível sem sacrificar o conteúdo. Penso muito nos Simpsons. É interessante para o velho, para a criança, para o guarda e para o director do museu. Se não, você vai ter uma atitude paternalista em relação ao seu público. O difícil é fazer inteligente e acessível. Mas aqui no Brasil as pessoas ainda vêem isso com elitismo.”
Torceram o nariz quando ele aceitou fazer o genérico da novela. “Aceitei na hora. Ter a sua obra difundida para 50 milhões, seis dias por semana, durante 10 meses! Ninguém tem dinheiro para esse tipo de exposição. Do ponto de vista quantitativo, isso não tem preço. Posso falar para qualquer motorista de táxi que ele conhece o meu trabalho. E é extremamente provocativo, também. Muita gente ficou brava comigo.”
O assistente já saiu. O artista vai à janela confirmar que não chove. Decide que vai para casa de moto.
Então para fechar, Portugal. Muniz fala de Pedro Cabrita Reis, Julião Sarmento, Delfim Sardo, Albano da Costa e Silva. E Joana Vasconcelos: “Acho interessante a trajectória dela. É o tipo de artista que foi para o mundo e recebeu um certo ressentimento disso. Eu quero trazer aquelas cortinas de renda para os Arcos da Lapa!” Os Arcos da Lapa são um ícone do centro do Rio de Janeiro, aqueduto pintado de branco.
De resto, Muniz é todo entusiasmo. “A coisa mais estranha do português é que ele fala a nossa língua! Porque ele é um europeu. É um europeu e fala a nossa língua! Adoro Pessoa, adoro o Eça. No fim do Padre Amaro, ele está na praça e você vê o século chegando. É lindo. Estou superfeliz de fazer essa exposição, de mostrar a minha obra para esse público que fala a minha língua. É a segunda coisa mais importante depois de mostrar no Brasil.”
(Público, 23-9-2011)