Lúcio Flávio Pinto: o rebelde com causa de Belém

Aristides Lobo, 871, é uma morada lendária em Belém do Pará. Atrás desta porta está um homem que dirige, edita, reporta e escreve sozinho um jornal. 12 páginas, sem cor, sem fotografia, sem publicidade. É o “Jornal Pessoal”, sai a cada 15 dias e custa 3 reais (1,3 euros). O extraordinário é que vai fazer 24 anos em Setembro. Uma história de rebeldia contra as versões oficiais da actualidade na Amazónia. E em cada edição, lá está a morada, provando que processos, agressões e ameaças de morte não levaram Lúcio Flávio Pinto a esconder-se.

É ele o homem atrás da porta, casa térrea, modesta, a cinco minutos da praça onde o histórico Teatro da Paz está fechado para reforma e até as plantas parecem cansadas, do trânsito, ou do abandono.

Tocamos, esperamos, tocamos. Lúcio Flávio tem de estar, porque acabámos de falar por telefone fixo. Como veremos, ele gosta de citar uma frase de Umberto Eco: “Quem tem poder não tem celular.” Ele não tem celular, embora não tenha poder, mas talvez isso seja uma forma de poder.

Tocamos, ainda uma vez.

Então a porta abre-se e ei-lo sorrindo, nem exuberante, nem frio, quase plácido, figura miúda, discreta, de óculos. Mas desde o início não há dúvida sobre o movimento que vai naquela cabeça. Leitor pantagruélico, escriba de alta velocidade.

A sala é fresca, sombria, com sofás baratos, uma escada para o piso de cima. “Faço o jornal no quarto”, diz Lúcio, já subindo.

E quando a escada acaba é um cenário irrepetível: um quarto em que um grande retrato de Beethoven convive com Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Nazaré, peneiras da Amazónia e pilhas imensas de livros, jornais, papéis, cadernos. A cama tem um simples lençol, por cima um teclado. No computador está a ser fechada a última edição.

Difícil contabilizar os livros. Até edições sobre a Al Qaeda e o Hamas. É matéria que lhe interesse? “Tudo o que é humano me interessa.” E a verdade é que isto é só o aperitivo. “Quer ver uma coisa incrível?”

Descemos novamente à sala e ele abre uma porta. Todas as paredes até ao tecto e parte do chão estão cobertas de livros. De Ralph Waldo Emerson a Galbraith, de Yourcenar a seis volumes com correspondência portuguesa na Índia. Porquê a Índia? “Por causa do colonialismo e também de Portugal. Sou neto de portugueses. O meu avô era de Elvas.”

A propósito de família, chega a filha com uma bebé bochechuda. Lúcio, 61 anos, transforma-se num avô radiante, a bebé ri. Família feliz, em pé, ao lado de um retrato de Frida Kahlo. Reparando bem, a sala também está cheia de heróis: Van Gogh, Kandinsky, os alfarrabistas de Paris.

A filha parte. Lúcio prossegue a visita. A cada sala julgamos já ter visto todos os livros, e depois há muito mais.

“Isso aqui era a garagem, mas aboli o carro”, mostra ele. Agora está atulhada de livros de direito. “Tive de estudar direito por causa dos meus processos, comprei uns 700 livros. Tive 32 processos contra mim desde 1992 e os advogados tinham medo de me defender porque as primeiras acções foram do Grupo Liberal, de comunicação, afiliado à Rede Globo, o mais poderoso em Belém. Então um amigo advogado, que não tinha escritório nem tempo, aceitou me defender desde que eu o ajudasse.” Dos 32 processos, viu-se condenado em quatro, recorreu e em nenhum a sentença foi executada.

 

Callas na cabeceira

 

Como todos os obstinados, Lúcio é um homem de paixão. Uma vez, antes de um dia de trabalho em Bruxelas, meteu-se num comboio para ir a Amesterdão ver Van Goghs. E voltando ao quarto, reparem na fotografia de Maria Callas à cabeceira, junto à poesia de João Cabral.

“O meu poeta do coração é Drummond. Mas a ‘Invenção de Orfeu’ de Jorge de Lima é o maior livro de poesia do Brasil.” E poetas da Amazónia? “Max Martins é o maior.” Prosa? “Haroldo Maranhão, Dalcídio Jurandir, Milton Hatoun, Ferreira de Castro… ‘A Selva’ é um grande livro da literatura mundial.” Nunca será demais dizê-lo, e Lúcio destaca-o sem qualquer problema de destacar um português, vários, aliás. O livro “mais deslumbrante sobre a Amazónia”, diz, é o do padre João Daniel “O Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, escrito no século XVIII.

Está um calor atordoante, húmido. É Verão, ao contrário do resto do Brasil, e no Verão não chove tanto, mas ainda há pouco caiu aquela chuvona de todas as tardes. Descemos ao quintal, entre açaizeiros e malaguetas a pingar. A sala das traseiras, onde se lava roupa, transborda de livros, com destaque para uma edição em pé dos “Irmãos Karamazov”.

“É como se fosse um garimpo, e o meu laboratório”, diz Lúcio, continuando a abrir anexos e armazéns repletos de estantes. Uma delas tem tantos milhares de livros que o chão afundou parcialmente. O anfitrião avança para a sombra, num labirinto onde só ele se pode orientar. O que Jorge Luis Borges não ia gostar disto. Estamos a falar de 40 mil livros e sete mil vinis, estimativa por baixo.

“Esse caos é fundamental para mim porque não sou especialista em nada, me deixo levar pela paixão. Os primeiros livros que comprei foram o ‘Almanaque Bertrand’ e o ‘Almanaque do Porto’, e fui descobrir que o Guimarães Rosa tirou algumas histórias dos almanaques portugueses. Compro livros desde os 12 anos.” Muitas vezes repetidos, por esquecimento. “Tenho várias colecções da obra do Eça, dois ‘Autos de Fé do Canetti’…

Talvez o mais valioso seja uma Bíblia de 1647. “Foram uns dominicanos depois de um almoço na Bélgica, estavam-se descartando da biblioteca…”

E há os documentos, cópias únicas ou mesmo originais. “É uma parte da história do Pará. E 320 cadernos, 300 mil páginas de anotações…” Resultado de 45 anos de jornalismo.

“Nasci em Santarém [cidade do Pará a meio caminho para Manaus]. Meu pai tinha uma gráfica, um jornal e uma livraria, só estudou até ao primário mas escrevia muito bem, falava inglês, era um grande orador, então se tornou político, foi eleito deputado estadual e viemos para Belém.” Se o avô materno era de Elvas, o paterno era do Ceará, fugiu da seca nordestina para vir cortar seringa. Ainda há uma avó índia. “A minha história é a da formação da Amazónia.”

Tinha 16 anos quando por acaso entrou na redacção d’ “A Província do Pará”. Perguntaram-lhe se não queria fazer um artigo sobre o último dia da II Guerra. “No dia seguinte fui contratado.” Depois o célebre historiador Arnold Toynbee vinha dar uma palestra a Belém e como Lúcio já lera livros dele foi enviado a entrevistá-lo. Toynbee engraçou com o garoto, e Lúcio passou a ser conhecido como Toynbee.

Aprendeu francês sozinho. Lia dicionários desde que se lembra. “A primeira palavra que disse foi ‘ábaco’.” Rapidamente o jornalismo se tornou uma causa. “Ler os documentos oficiais e questionar: isto é verdade? Isso é o jornalismo para mim.”

E a Amazónia o seu território.

 

A nova ocupação

 

Até meados dos anos 60, a Amazónia viveu isolada do Brasil, resume Lúcio. “Na época da Colónia, era mais fácil ir de Belém a Lisboa que de Belém ao Rio, por causa dos ventos. E no século XIX quem continuou a mandar foram os comerciantes portugueses.” Até à Revolta da Cabanagem, quando índios e mestiços se viraram contra a elite. Mas o isolamento não acabou. “O império brasileiro nunca entendeu a Amazónia. Na Cabanagem morreu 20 por cento da população, seria como hoje dois milhões. Povoados inteiros desapareceram, e isso não existe na história mundial e não consta da história oficial do Brasil.” Continua a ser assim, de certa forma, diz. “Quantos morrem por ano aqui? Dos 10 municípios mais violentos do Brasil, quatro estão no Pará. Belém é mais violenta que o Rio ou São Paulo.”

O momento em que o Brasil se virou para estas terras, diz Lúcio, foi no pós-golpe da ditadura, a meio dos anos 60. Os militares decidiram integrar a Amazónia no Brasil. Grandes projectos, como a estrada Transamazónica, que iria atravessar toda a largura do Brasil, até ao Atlântico. A floresta foi engolindo partes.

“Numa terra, primeiro vem o bandido, para amansar, depois vem o mocinho [herói]”, ironiza Lúcio. “Só que na Amazónia o mocinho nunca chegou.” O Pará está a ser disputado por madeireiras, mineradoras e criadores de gado. “15 por cento da floresta amazónica já foi destruída. Nunca o homem derrubou tantas árvores. A Amazónia era a última esperança de uma civilização florestal, e isso está acabando.”

 

São Paulo e volta

 

Lançado aos 16, Lúcio não demorou a chegar à grande imprensa. Trabalhou cinco anos em São Paulo, dois dos quais no “Estado de São Paulo”, como coordenador de correspondentes nacionais. Aproveitou para estudar sociologia e depois convenceu o director a abrir uma delegação em Belém para uma cobertura mais profunda da Amazónia. “Como representante da plutocracia paulista, o ‘Estadão’ seria o melhor lugar para isso, tal como Marx estudou o capitalismo no Museu Britânico.”

Não hesitou em trocar São Paulo por Belém, ou seja, o Brasil pela Amazónia. “Ah, sim, Porque o Brasil ia destruir a Amazónia. Voltei para impedir o que ia acontecer. A população continuava vivendo do extrativismo [o que a selva oferece naturalmente] sem saber que vinham aí os grandes projectos de desmatamento, de mineração. Eu queria que a população escapasse a uma nova colonização, que a Amazónia escapasse ao destino da África e da Ásia.”

Já correspondente do “Estadão” em Belém, começou a receber ameaças de morte. A primeira foi em 1984: “Telefonaram-me a dizer: ‘Prepara a manchete de amanhã: ‘Lúcio Flávio Pinto assassinado.’ Eu não queria segurança, nunca andei armado, nem quero. Fui me informar. Estava denunciando um governador do Pará por corrupção, eram pessoas dele.” Lúcio tinha sido amigo dele na escola. Telefonou-lhe. “Ele me respeitava. Muitas coisas no Brasil acontecem pelo ‘jeitinho’.”

Ao longo dos anos nunca aceitou cargos. “Posso falar mal de todo o mundo porque não devo favores. O que me protege é não ter um rabo preso. Já desagradei a todos. Meu jogo é limpo. Nunca uso gravador oculto. E as pessoas sabem que eu sei. Tenho uma rede de fontes preciosa, muita informação. Um jornalista não pode se permitir ser surpreendido.”

Assim sendo, numa cidade violenta como Belém, não só não anda armado como não toma precauções. “Saio para nadar às cinco da manhã todos os dias. Vou andando a pé.”

Fundou o “Jornal Pessoal” em 1987, quando um amigo foi assassinado. “Jurei revelar todos os factos.” O ‘Estadão’ já tinha acabado com a sucursal, restava só ele como correspondente. “Resolvi me jogar de cabeça, tirar o pé da grande imprensa.”

Entretanto, passou por 11 gráficas. Imprime 2000 exemplares, vende 1500. Dá para pagar um terço dos custos. O resto, vem de palestras e artigos que vai fazendo, a pedido. “Nem sou aposentado, nem pago aposentadoria. Resolvi viver como um ‘outsider’. Sou um pobre. Ando de ónibus, só viajo quando me convidam.”

Além das ameaças de morte, em 2005 foi agredido num restaurante por um dos donos do jornal local, ‘Liberal’. Levou um soco, foi empurrado e depois pontapeado.

Ainda assim, não se imagina a partir. “Como vou carregar os meus livros? E os documentos?” Está tranquilamente sentado no sofá, como se já não tivesse qualquer ilusão. “Belém ficou selvagem, um lugar para ganhar dinheiro, em que a grande economia é a informal e a criminalidade, uma cidade que optou pelo crescimento vertical. Não é a minha cidade. Prevejo um futuro terrível. Vai ter inundações cada vez maiores por causa desse padrão de crescimento. E as pessoas na rua viram a cabeça com medo, uns 70 por cento já foram assaltados ou têm alguém da família que foi. É a cidade mais barulhenta do planeta. O que existe de bom são as mangueiras do centro antigo. Mas as mangas caem, quebram carros, atingem as pessoas…”

E a Amazónia? “Está perdida. Mas enquanto puder, vou fazer contra. É a primeira vez que um povo colonizado tem oportunidade de não ter um destino colonial, e está desperdiçando isso.”

 

(Público, 16-8-2011)

12 comentários a Lúcio Flávio Pinto: o rebelde com causa de Belém

  1. Lúcio Flávio Pinto é a resistência ética e inteligente que deixa a AmazÔnia com a possibilidade de discordar da palavra oficial vinda de Brasilia,São Paulo,Minas Gerais,Rio de Janeiro e principalmente de quem quer ver o Pará com a riqueza concentrada na mão de poucos!
    Coragem em extinção no BRASIL! Ao “JP” longos anos, ao Lúcio qualidade de vida de preferencia sem as atribulações dos processos descabidos! Allan Carneiro-Administrador.

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  2. Lúcio Flávio é uma referência do jornalismo amazônico e quiçá brasileiro. Sou de Belém, mas trabalho como jornalista na Santarém que viu LFP nascer. Meu trabalho de conclusão de curso versou sobre a experiência de seu pai, político que marcou época por ter sido cassado quando prefeito. É sempre bom ver publicações de nível internacional que se preocupam em retratar homens de um mundo longínquo, onde o exótico ainda vende mais páginas. Mas este perfil não tem nada de exótico. É um belo ensaio sobre um ser humano de indescritível personalidade.

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  3. Lúcio Flávio Pinto

    É sempre bom saber que alguém fala bem deste homen, deste cidadão…, já bateram muito nele, ele merece absoluto respeito.
    Lúcio Flávio faz parte de meu documentário – Fordlândia – com depoimento contundentes e definitivos hoje somos amigos, e eu tenho muita honra disso.

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  4. Parabéns ao Público e ao blog por trazer como tema o trabalho do jornalista Lúcio Flávio Pinto.
    Fiquei muito contente em ver meu antigo professor Lúcio Flávio ser reportado aqui do outro lado do Atlântico, onde me encontro em doutoramento.
    Ele é mesmo um exemplo de como se fazer jornalismo investigativo e de como se pode sofrer ao exercer a profissão em regiões, de um país democrata, que tem grandes grupos familiares que detêm muitas concessões dos meios da comunicação social.

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  5. Lúcio Flávio Pinto
    Um homem lúcido, inteligente.
    Se quiser entender a Amazônia, não como lugar exótico, é necessário conhecer, acompanhar o que o Lúcio Flávio escreve.
    Brasil e Portugal têm muito em comum. Parabenizo o Público pela matéria em especial a Alexandra Lucas Coelho. Com muita honra fiz meu trabalho de conclusão e hoje aposto o Mestrado, destinados a esperteza de seu trabalho.

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  6. Muito bom ler sobre Lúcio Flávio Pinto. Único que faz jornalismo de verdade sobre a Amazônia. Muita honra por ter sido sua aluna e por seguir seus passos até hoje. Vida longa ao jornalista! O mundo precisa de uma carrada de homens assim. Parabéns ao blog pela brilhante entrevista.

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