Herberto volta a Minas

  1. A última vez que estive aqui, era Inverno como agora, no Hemisfério Sul, Herberto Helder estava vivo e acabava de publicar Servidões. Li-o nesta varanda voltada para uma montanha chamada Pedra do Papagaio. Por isso, ao lugar cá em baixo as pessoas chamam A Pedra. Não é sequer aldeia: uma casa aqui, outra ali. Da minha varanda, por exemplo, não vejo nenhuma casa, só montanha para onde quer que volte a cabeça. Tenho de fazer uma caminhada se quiser chegar aos vizinhos, e os de mais perto não moram aqui todo o ano. O sol nasce às seis e meia, põe-se às cinco e meia, a partir daí é de tremer. Segundo a metereologia, hoje ia ser o único dia de sol completo, então trouxe os Poemas Canhotos até à varanda, para enfim os ler. Na presença de luz as plantas libertam oxigénio. Fotossíntese.

 

  1. Quase uma jangada, a varanda, toda em tábua corrida, um tronco a fazer de varandim, cobertura de telha-vã, e como os lados são abertos, e há muitas janelas para dentro, a luz atravessa a casa. Difícil é chegar à mão que escreve, sempre cega, em volta, como os insectos que de noite batem nas lâmpadas.

 

  1. ¿que interessa fazer a barba se é tudo para cremar?, pergunta um dos poemas canhotos, com aquela dupla interrogação dos espanhóis que Herberto faz sua porque sim, como uma rosa é uma rosa é uma rosa. Também está no livro, essa tripla, penta, múltipla rosa lida há tanto, e por vezes a exclamação também é dupla, só ele sabe quando. Gosto da pontuação canibal de Herberto, dos travessões dentro de travessões, dos dois pontos em série, uma frase encadeando outra (no mesmo verso quebrado: / boca: / e a fome que a devorava). Em guarda urubus, que os prontuários são o começo e não o fim, e as cinzas de quem não serviu senhor espalham-se por toda a parte.

 

  1. Herberto gostava de números. Este único dia de sol é 23 de Junho, exactamente três meses depois da sua morte. Quer dizer que o equinócio de Inverno foi anteontem, o dia mais curto do Hemisfério Sul. Na minha bússola, o Norte está exactamente à frente do livro que tenho aberto no colo. Não me aparecem as coordenadas. Sem serviço, diz o canto do telefone. A Pedra é um bom lugar para espalhar cinzas.

 

  1. Então será isso, vim espalhar cinzas de frente para o sol, antes que caia do outro lado. Ontem contaram-me que um feiticeiro curou os olhos de um rapaz dizendo-lhe para olhar o sol. Isto aconteceu um dia em África e chegou-me ontem aqui, à semelhança da cinza que passa a ser de toda a parte.

 

  1. Espalho o livro em iorubá: atotô, montanha, atotô, rés das águas, atotô, amador, atotô, coisa amada, essa que se torna poderosa na dor do amador. Sim, a meus pés corre um rio, ouço-o de noite e de dia, é o meu gerador natural, quando a varanda se soltar, encosta abaixo, será enfim uma jangada: atotô, rio da Pedra. Se os mortos respondem em wolof, como Michaux escreveu, e Herberto mudou para português, também podem responder em iorubá. Estou no interior de Minas Gerais, escavando muito vou achar ossos de iorubás, aqueles que os portugueses roubaram de África, tornaram escravos. E uma coisa que fiz desde a última vez que o li, Herberto Helder, foi aprender a escavar ossos.

 

  1. Sabe que no Brasil muito se diz agora Inês é morta? Vejo que a desenterrou de novo antes de morrer, para, boca do rei na boca da rainha, de sôpro e hausto fundidas, chegar a isto:

 

revelação é o crime

do lenço atado em si mesmo

uns lhe chamam casamento

 

  1. E, numa sequência em que aparecem Salman Rushdie, Poemas Satânicos, caricaturas e ayatolas, vejo, não que lia jornais, do horóscopo aos classificados, porque até os classificados já estavam no poema contínuo, e sim que o seu Deus derradeiro é em maiúscula e mortal, tão mortal que a seguir aparece a dizer olá colega! ao mais recente candidato a Rimbaud. Quanto a Rimbaud, o da gangrena, o da amputação, atravessa todo o arco dos seus poemas ao longo de meio século como o mau sangue que sobreviverá a tudo, Deus e os que querem entrar no filme depressa depressa o mais depressa possível. Deus, pátria, família, amigos: nada. Os poemas canhotos são ímpios, antropófagos, incestuosos, até ao último desafio: que me ajudem a morrer os que têm alegria.

 

  1. O lance final diz:

 

estes poemas que avançam

no meio da escurdião

até não serem mais nada

que lápis papel e mão

e esta tremenda atenção

este nada

uma cegueira que apaga

a luz por trás de outra mão

tudo o que acende e me apaga

alumiação de mais nada

que a mão parada

alumiação então

de que esta mão me conduz

por descaminhos de luz

ao centro da escuridão

que é fácil a rima em ão

difícil é ver se a luz

rima ou não rima com a mão

 

  1. Caído o sol, há que voltar para dentro. Véspera de São João, haveria fogueira se fosse sábado, mas é terça, e a lua não chega para tanta noite, tal como ninguém vai chegar. Tenho os meus mortos e portanto estou viva, atotô, montanha, atotô, rés das águas, atotô, dor que o amor transporta. Talvez Herberto responda em iorubá.

 

 

(Público, 7-7-2015)

O vestido pós-11-de Setembro

  1. Quatorze anos depois, voltei a pôr o meu primeiro vestido pós-11 de Setembro no aeroporto de Istambul, entre vir de Lisboa e voar para o Iraque. Isso aconteceu na quarta-feira, e vesti-o todos os dias até hoje, sábado. Aliás, de ontem para hoje nem cheguei a tirá-lo, dormi com ele no chão de uma sala de mulheres peshmergas, combatentes curdas que se têm revezado na linha da frente contra o “Estado Islâmico”. O resultado disso foi um rasgão de lado, tão esgarçado está o tecido. É, no mínimo, o que se pode dizer desta parte do mundo quatorze anos depois, e pode bastar um vestido para alguém perder a cabeça. Foi por isso que o meu tradutor curdo ficou aliviado quando lhe mostrei o rasgão, dando o vestido por acabado.

 

  1. O meu tradutor não me disse logo de início o que achava do vestido. Nem sequer o que o irmão, nosso condutor, achou ao avistar-me no parque de estacionamento do aeroporto de Suleymaniah, enquanto ele me procurava nas chegadas. Eu não sabia que ele lá estaria à espera, muito menos que haveria um irmão. Quando ele, porque não me localizava, ligou ao irmão que continuava lá fora, o irmão respondeu-lhe que, assim com as minhas características, só vira uma iraniana.

 

  1. Claro que a iraniana era eu, mas só percebi isso muitas horas e quilómetros depois de aterrar, ao cair da noite em Erbil, a capital do Curdistão Iraquiano. O meu tradutor acabava de, finalmente, receber um telefonema confirmando que um comandante peshmerga nos receberia na linha da frente na manhã seguinte. Erbil fica apenas a 80 quilómetros de Mossul, a cidade que o “Estado Islâmico” tomou em Junho de 2014, deslocando o mapa do Médio Oriente, e o foco do mundo, de um momento para o outro. Ao longo das centenas de quilómetros de linha da frente entre o Curdistão e o “Estado Islâmico”, a zona entre Erbil e Mossul é a mais simbólica. Exército iraquiano, milícias pró-iranianas, coligação internacional e peshmergas curdos estão a tentar cozinhar a retomada conjunta de Mossul. Uma aliança de inimigos, impensável antes de o “Estado Islâmico” ter batido recordes de crueldade desde que há Internet. Mas até que uma aliança aconteça, os curdos é que seguram a sua linha da frente no terreno, tentando que as trincheiras se mantenham mais perto de Mossul que de Erbil. E há um mês a capital curda tremeu quando enviados do “Estado Islâmico” detonaram um carro-bomba junto ao Consulado Americano, em pleno bairro cristão. Um sinal de como o Califado conseguia matar bem além da linha da frente.

 

  1. O comandante curdo que nos ia receber agora estava num ponto dessa linha, perto de Nimrud, a mítica cidade da Assíria cuja destruição o “Estado Islâmico” recentemente filmou ao melhor estilo Rambo. Tínhamos de lá chegar às dez da manhã, anunciou-me o meu tradutor. E a sorrir, como bom oriental, perguntou então se eu só tinha aquele vestido.

 

  1. Por acaso sim, porque o resto da roupa, que já não era muita, ficara em Suleymaniah. Mas, argumentei, eu comprara aquele vestido no Paquistão uma semana depois do 11 de Setembro, era um vestido igual ao de milhões de muçulmanas, que me cobria até aos joelhos, por cima de calças devidamente largas. Pois, mas o problema era justamente ser um vestido paquistanês, explicou ele. Que me cobrisse mais ou menos não era tão importante, mas ser paquistanês, sim, mais do que importante, perigoso. Paquistanês, iraniano, afegão, o meu vestido parecia qualquer uma destas coisas, talvez árabe, em última análise marroquino, e qualquer uma destas coisas podia inspirar mais desconfiança do que eu ser uma ocidental descoberta. Isto, do ponto de vista curdo, que frequentemente prefere Bush a Obama, porque Bush acabou com Saddam e ninguém é um monstro maior do que Saddam do ponto de vista curdo, pelo menos até ao aparecimento do “Estado Islâmico”. E, para reforçar o seu ponto, o meu tradutor contou-me o que o irmão lhe contara no aeroporto. Pior do que paquistanesa (do ponto de vista curdo): eu podia ser iraniana. Portanto, que tal comprar algo ali para vestir?, perguntou, apontando as lojas ainda abertas.

 

  1. Eis como o puzzle desta parte do mundo só ficou mais complexo e sectário nos últimos quatorze anos. A “guerra contra o terror” com que Bush respondeu ao 11 de Setembro multiplicou os demónios, e um dos exemplos é a latente guerra civil no Iraque (curdos sunitas, árabes sunitas, árabes xiitas, e as suas diversas áreas de influência externa), que só não reemerge porque há a emergência do “Estado Islâmico”.

 

  1. Corremos as montras femininas até o meu tradutor admitir que, de facto, nada daquilo servia, variava entre roupa de parturiente e fancaria flamejante. OK, concedeu, grave, se não havia nada a fazer eu iria com o meu vestido.

 

  1. Prossegui as sondagens: o recepcionista do hotel onde dormi alvitrou que eu vinha de Marrocos, e a recepcionista concordou, mas uma cliente sentada no átrio contrapôs em voz alta: Paquistão! O meu tradutor sorriu. Entre as peshmergas que me alojaram na noite seguinte, Índia, Marrocos e Afeganistão ficaram empatados em segundo lugar com um voto. Vitória para o Paquistão.

 

  1. Entretanto, fomos à linha da frente, onde o vestido não assumiu nenhum papel nos acontecimentos: nem nos checkpoints nem na linha da frente alguém me tomou por paquistanesa, iraniana ou marroquina. Mas também não passou despercebido. Em plena trincheira, o meu tradutor decifrou os sussurros, e teve de rir para dentro. Porque junto aos sacos de areia de onde fazem mira contra o “Estado Islâmico”, a menos de dois quilómetros, os soldados discutiam de onde diabo vinha eu. E certamente porque, por alguns dias, um terramoto ultrapassou o Califado nas notícias, a teoria militar era esta: eu vinha do Nepal.

 

(Público, 17-5-2015)

Tome espaço do estado da justiça

  1. Eu morava no Brasil, impossível esquecer, quando o então ministro da Justiça disse: “Do fundo do meu coração, se fosse para cumprir muitos anos em alguma prisão nossa, preferia morrer.” Porque, explicou, as prisões no Brasil são “escolas do crime”, onde quem entra “como pequeno delinquente muitas vezes sai como membro de uma organização criminosa para praticar grandes crimes”. E concluiu: “Temos um sistema prisional medieval que não é só violador de direitos humanos, ele não possibilita aquilo que é mais importante em uma sanção penal que é a reinserção social.” José Eduardo Cardozo, se chamava o ministro, falou assim em Novembro de 2012, e de ontem para hoje nada ficou menos medieval, ao contrário, gente nas ruas do Brasil pedindo a volta da ditadura e menores na cadeia.

 

  1. Não apenas nas ruas. Esta semana, deputados lá em Brasília decidiram que a redução de maioridade penal é compatível com a Constituição. Por 42 votos a favor e 17 contra, a Comissão de Constituição e Justiça considerou constitucional o projeto que reduz a maioridade de 18 para 16 anos. O que significa reduzir a maioridade penal? “Ver mais gente entrando de vez no crime, o que significa: ver mais gente se tornando plenamente matável”, comentou no Facebook o poeta-ensaísta-activista Eduardo Sterzi, lembrando o que Oswaldo de Andrade escreveu vai para um século: “O Brasil, desde a idade trevosa das capitanias, vive em estado de sítio. Somos feudais, somos fascistas, somos justiçadores.”

 

  1. Frei Betto é um dos muitos brasileiros que a ditadura pôs na cadeia. “Nos 54 países que reduziram a maioridade penal não se registrou redução da violência”, diz num texto de 2014, muito partilhado agora, depois da votação dos deputados. “O índice de reincidência em nossas prisões é de 70%. Não existe, no Brasil, política penitenciária, nem intenção do Estado de recuperar os detentos. Uma reforma prisional seria tão necessária e urgente quanto a reforma política. As delegacias funcionam como escola de ensino fundamental para o crime; os cadeiões, como ensino médio; as penitenciárias, como universidades.” Nesses cadeiões, os adolescentes ficarão “trancafiados como mortos-vivos, sujeitos à violência, inclusive sexual, das facções”. Frei Betto dá como contraponto o sistema socioeducativo para menores infractores onde o índice de reincidência é de apenas 20%. “Nosso sistema prisional já não comporta mais presos. No Brasil, eles são, hoje, 500 mil, a quarta maior população carcerária do mundo. Perdemos apenas para os EUA (2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (740 mil). Reduzir a maioridade penal é tratar o efeito, e não a causa. Ninguém nasce delinquente ou criminoso. Um jovem ingressa no crime devido à falta de escolaridade, de afeto familiar, e por pressão consumista que o convence de que só terá seu valor reconhecido socialmente se portar determinados produtos de grife. Enfim, o menor infrator é resultado do descaso do Estado, que não garante a tantas crianças creches e educação de qualidade; áreas de esporte, arte e lazer; e a seus pais trabalho decente ou uma renda mínima para que possam subsistir com dignidade em caso de desemprego.” É esta omissão do poder público, sempre investindo nos efeitos e não nas causas, que deveria ser punida, defende este teólogo. Vale a pena parar nos números da educação citados por ele noutro texto: “Hoje, 19,2 milhões de brasileiros (10% de nossa população) não têm qualquer escolaridade ou frequentaram menos de um ano de escola. Não sabem ler nem escrever 12,9 milhões de brasileiros com mais de 7 anos de idade. E 20,4% da população acima de 15 anos são de analfabetos funcionais — assinam o nome, mas são incapazes de redigir uma carta ou interpretar um texto. Na população entre 15 e 64 anos, em cada 3 brasileiros, apenas 1 consegue interpretar um texto e fazer operações aritméticas elementares. Em 2011, 22,6% das crianças de 4 a 5 anos estavam fora da escola. E, abaixo dessas idades, 1,3 milhão não encontravam vagas em creches.” O dado mais alarmante, resume Frei Betto, será este: mais de cinco milhões de brasileiros entre os 18 e os 25 anos estão fora da escola.

 

  1. É justamente nessa idade que se morre mais de forma violenta no Brasil, sobretudo sendo negro. A Amnistia Internacional tem uma campanha em curso chamada “Jovem negro vivo”. O texto do apelo diz: “O Brasil é o país onde mais se mata no mundo, superando muitos países em situação de guerra. Em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados.” Ser jovem e negro no Brasil é ser um alvo entre a violência do tráfico e a violência da polícia, que frequentemente constituem uma só, com a diferença de que a polícia representa o Estado.

 

  1. No dia seguinte ao voto dos deputados sobre a redução da maioridade penal morreram mais quatro pessoas no Complexo do Alemão, um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro. Quando fui morar para o Brasil, no Outono de 2010, o Complexo do Alemão viu-se tomado pela polícia numa sensacional operação de “pacificação”. Imagens de traficantes em fuga, chegada do Estado, tudo isso coincidindo com o fim triunfal de Lula e o arranque de Dilma, real hipervalorizado, preços disparando, consumo disparado. Mais de quatro anos depois, amigos brasileiros chegam a esta Primavera-Verão lisboeta com o real a valer quase metade e o país dividido num clima de pré-guerra civil, em que nostálgicos da ditadura defendem a redução da maioridade penal e de caminho o impeachment de uma presidente democraticamente eleita há meses. Entretanto, longe dos condomínios deles, uma mãe de 41 anos está no Complexo do Alemão quando uma bala lhe entra em casa a matar, e a filha de 14 anos que corre a socorrê-la é baleada.

 

  1. No meio da pré-guerra, como em todas as guerras, multiplicam-se poemas, música, canções. A uma semana de voar para o Outono-lá, entrei na Primavera-cá a ouvir os recentíssimos, e íssimos, Diahum/Bahia de Guanabara, do Dimitri Rebello, Amarelo, do Bruno Consentino, e Ava Patrya Yndia Yracema, da Ava Rocha, que há um ano foi capa do Ipsilon, já preparando a resistência para o que aí vinha, ao lado de Negro Leo, mais a trupe do Baile Primitivo. Tão filha de Glauber que está na cara, ela diria na alma, Ava canta: Tome espaço do estado da polícia.

 

(Público, 5-4-2015)

O amor ocupa a morte

  1. Escrevo à mão porque tenho frio, vim para a varanda onde o sol queima, e estão os livros de Herberto: um gato, uma serra eléctrica, nêsperas maduras, os morangos que trouxe da rua esta manhã. Estava na rua quando me ligaram, ia a caminho do correio com sacos cheios de lixo, plástico, papel, rodara tudo em busca de um ecoponto. O telefone tocou na esquina da rua das Flores, eram onze e meia, a notícia já corria. Desliguei, liguei ao amigo que me deu O Amor Em Visita e outras primeiras edições, ele disse que acabara de me escrever, escrevera apenas, morreu o Herberto, e desligámos. Despachei o correio, desci ao Mercado da Ribeira para despachar o lixo, vi magrebinos ao lado de alentejanos, gente que acorda de madrugada sete dias por semana, deram-me cartões. Parecia que o mundo não tinha mudado, a notícia descia devagar, era bom caminhar, havia que caminhar, eu tinha de trabalhar, eu já estava atrasada, mas algo pousava como um depósito, e essa palavra era amor.

 

  1. Pensei então que não conseguiria fazer mais nada senão estar dentro daquilo, a queda da palavra que vinha depois da morte, então depois da morte era isto, Herberto Helder. Nós sabíamos que um dia ia acontecer, e afinal não foi uma explosão, antes um silêncio enquanto o amor tomava conta, um silêncio por dentro do galo, da serra eléctrica, da gente na janela, da roupa branca. Pensei no meu amigo António Poppe quando me contou como lera o último livro de Herberto no dia em que saiu, foi até ao mar com ele. Eu estava em Matosinhos, era Junho, aquele ruído que não tinha nada a ver com a poesia, só com trabalhadores do comércio, especulação. Lembro-me de que estava em Matosinhos e fui ao shopping e comprei o livro, para mim e para oferecer, quatro exemplares. Depois levei-o para o Alentejo, onde já estavam outros livros de Herberto numa bolsa, tal como os trouxera do Rio de Janeiro. Durante meses não abri o celofane sequer, mudei-me do Alentejo, voltei a Lisboa, para esta casa onde só tenho os livros de que preciso para o que estou a escrever, e os livros de Herberto, sempre os livros de Herberto. Desde que fui morar para o Brasil é isto, Herberto foi sempre na mala. Deixei dez mil livros em Alfama, mas os de Herberto foram morar no Cosme Velho, no meio dos macacos, dos tucanos, dos mosquitos do dengue, à mercê do mofo, incluindo O Amor em Visita, aquela edição frágil, sempre guardada dentro do envelope vermelho em que a recebi, com uma janelinha recortada para deixar à vista a palavra amor, a primeira, a única.

 

  1. Só estive com Herberto uma vez. O Manuel Hermínio Monteiro apresentou-nos daquela forma que ele tinha de tornar tudo natural, a Alexandra ainda não conhece o Herberto? E o Herberto afável, falando disto e daquilo, já não me recordo, sei que pensei, o Herberto, que afável. Não havia reverência. Claro que dava medo, mas o medo era meu. Anos depois, eu voltara de viagem, ainda no tempo em que as pessoas deixavam mensagens de voz nos telemóveis, e, ao descer as escadas do prédio ouvindo as mensagens desses dias em que estivera fora, quase caí ao ouvir, fala Herberto Helder, não havia engano, aquela voz grave do disco da Phillips, eu chegava da Índia e aquilo parecia vir de outro planeta, como assim Herberto estava dentro do meu telemóvel? Tal como, das poucas vezes que ia a Cascais, pensava que voltando à direita seria a rua de Herberto, e como assim ele morava já ali adiante? Depois, daquela vez que fui à Madeira, a primeira, com o Manuel Hermínio Monteiro e o Enrique Vila Matas, fomos visitar o presépio do bisavô do Herberto, numa cave da família. Era a célebre Lapinha do Caseiro, de que a Assírio & Alvim veio a fazer um livro. Entre todas aquelas figurinhas esculpidas a canivete havia uma fotografia do bisavô de Herberto, parecia o Tolstoi. E um dia, em Lisboa, chegou-me A Faca Não Corta o Fogo com uma dedicatória que ocupava uma página, Herberto falava de Inês de Castro e dos árabes, foi como se um monólogo passasse a diálogo. Ele estava do lado de lá. Depois, o Ofício Cantante, chegou-me com outra mensagem sobre nos acharmos próximos a Oriente e Ocidente. Ele lia jornais, lia livros, falava ao telefone, morava num prédio. Ele continuava do lado de lá.

 

  1. Entre os livros que levei para o Rio de Janeiro havia, por exemplo, A Apresentação do Rosto que o Vitor Silva Tavares editou na Ulisseia e Herberto retirou da sua obra, mais do que um amigo brasileiro a leu aqui e ali, todos praticantes da psicanálise. Havia os Passos Em Volta, que tem o “Teorema” do ponto de vista do assassino de Inês de Castro, a primeira edição, presente do mesmo amigo de O Amor em Visita, e a segunda edição presente de uma querida amiga minhota porque pertencera a um irmão. Ou o Cobra, que outro amigo querido me deu, e pertencera ao pai. Mas foi O Amor em Visita que lemos certa noite, na íntegra, na selva do Cosme Velho, uma mesa de amigos portugueses e brasileiros, no meio dos quais um par de noivos, aquela brochura passando de mão em mão, capaz de todos os sotaques, inaugurando a audácia, o jovem Herberto que aos 80 anos haveria de escrever travesti brasileiro, dote escandaloso, leio, venha ser minha fêmea.

 

  1. Os livros de Herberto foram os únicos que levei assim de casa em casa, com uma passagem pelo interior de Minas Gerais, 40 dias. E o primeiro livro que li na casa onde agora escrevo foi enfim A Morte Sem Mestre, porque já passara o ruído, era o momento. É assim que Herberto aparece em todos os livros que escrevi, a propósito disto ou daquilo, do Oriente Próximo ao México, do Brasil ao Canidelo, com manguito, sendo caso disso. Aparece porque estava lá, sempre a andar de um lado para o outro, como um cigano, ou uma pedra dos druidas, e anda. Achei o título do meu primeiro romance em Edoi Lelia Doura, a antologia que Herberto fez de poesia portuguesa. Uma das traduções possíveis dessa frase é “e a noite roda”.

 

  1. Em alguns livros de Herberto, por exemplo, Photomaton & Vox, escrevi como em folhas brancas, mais do que notas, um caderno, mas hoje não quero abri-los, reler o que escrevi e o que já estava lá, e de cada vez parece pôr-se em movimento. A cada ano dei por mim a começar o ano com aquele aviso que Herberto escreveu numa entrevista há quase 50 anos, o de que há que estar disponível para desiludir as expectativas porque desiludir é garantir o movimento, e ninguém viverá a nossa aventura por nós. A obra de Herberto tem esta força de resistência única, mil vidas convergindo para um núcleo, ou a possibilidade ilimitada de uma vida. Vemos nele o mistério no limite do humano, é um acontecimento, um antes e depois. Nenhum outro escritor, que eu conheça, teve este impacto orgânico na vida de leitores portugueses. Talvez por isso o que a sua morte liberta seja uma gratidão maravilhada por Herberto fazer parte da aventura de cada um, por termos estado vivos ao mesmo tempo, por ele ter vivido tanto por nós, e cada um com ele. Que cada um faça a sua despedida e siga, livre.

 

  1. O António manda uma mensagem a dizer, o amor revelado vasto além da matéria, convoca-nos para lermos juntos, bebermos juntos, no caso dele as duas acções são a mesma, bebeu todo o Herberto, tem-no literalmente dentro. Esta nossa terça-feira divide o tempo, momento do frente a frente, de tomar o peso ao que recebeu, a tudo o que Herberto liga. António está a beber mezcal quando chego, a um canto uma das irmãs lê um texto do primeiro livro que o António teve, e era do irmão, 1990, diz a data. O Nuno já não lê, bebe, a Joana ouve, o anfitrião de todos nós tem A Morte Sem Mestre junto ao mezcal. Nunca chegámos a tomar um café, caro Herberto, e contam-me que só bebia café, quando ia ali às tascas da Misericórdia, das Escadinhas do Duque. O amigo que hoje decidiu apanhar um comboio para estar mais perto de si amanhã contou-me que a rua que dali desce se chamava Rua do Mundo. Também disse que o tempo continua onde o Herberto continua. Mas é a isso que estou a chamar amor.

 

(Público, 29-3-2015)

Um pesadelo para acordar

  1. Enfim bons motivos para celebrar as eleições israelitas: acabou o blablabla sobre o processo de paz, o futuro estado palestiniano, o empenho do governo de Israel, a única democracia do Médio Oriente. A vitória de Netanyahu é o fim da sonsice após décadas de banho-maria. Ele disse, finalmente, que é contra um estado palestiniano; apelou aos “judeus de direita” que corressem a votar contra o “risco” da “quantidade de árabes [israelitas]” habilitados a votar; e um seu ministro sugeriu decapitar os árabes israelitas “desleais” ao estado. Com os dentes assim para fora, fica difícil para a Europa e sobretudo para os Estados Unidos continuar a fingir que há aqui um processo de paz, um futuro estado, um empenho, uma democracia. Não por acaso Obama ainda não ligara a Netanyahu três dias depois das eleições (data em que escrevo), e não por acaso o que entretanto corre é que a Casa Branca pondera, finalmente, apoiar a resolução das Nações Unidas sobre o reconhecimento de dois estados nas fronteiras de 1967. Isto, quando Israel conseguiu manter o status quo durante tempo qb para parecer irrealista voltar às fronteiras de 1967. Se Netanyahu deixa de fazer de sonso é porque já não precisa.

 

  1. As palavras foram frontais. Avigdor Lieberman, ministro israelita dos Negócios Estrangeiros: “Quanto àqueles [árabes israelitas] que estão contra nós, nada a fazer. Temos de pegar num machado e cortar-lhes a cabeça.” E Benjamin Netanyahu, depois de confirmar a um entrevistador que nunca criará um estado palestiniano: “Penso que alguém que hoje estabeleça um estado palestiniano e evacue territórios estará a dar campo ao Islão radical para atacar Israel.” Os optimistas dirão que Netanyahu ganhou apesar disto, os pessimistas dirão que ganhou por causa disto, mas que não haja qualquer distância relevante entre uns e outros só expõe o vazio de décadas de negociações, tapado pelo blablabla. A estratégia, frontal, de Netanyahu é a da anti-evacuação: continuar a colonizar os territórios palestinianos, tornando cada vez mais impossível qualquer estado palestiniano nas fronteiras de 1967. E o resultado é que, geograficamente, a Palestina é um trapo roto, roído por mil traças, como qualquer pessoa pode verificar apenas indo lá, mesmo sem poder ir a Gaza, o que qualquer pessoa não pode, mesmo.

 

  1. Apenas indo lá faz toda a diferença. Foi o que Joana Villaverde aprendeu entre 2014 e 2015, em duas temporadas nos territórios palestinianos ocupados da Cisjordânia. Enquanto Lieberman e Netanyahu arregaçavam os dentes em campanha, ela voltava de Jericó e Jaffa para finalizar os preparativos da sua exposição “Animal’s Nightmare”, que inaugura a 4 de Abril, numa cavalariça de Aviz, Alentejo. Joana acha que passou anos a falar de si no que ia criando, e que isso mudou, primeiro numa estadia de trabalho em Nova Iorque, quando pela primeira vez se viu a sós, sem filhas, família, amigos próximos, depois quando se mudou parcialmente para Aviz. A Palestina, como tema de resistência, apareceu-lhe entre Nova Iorque e as oliveiras alentejanas, foi lendo, vendo, ouvindo, fixou-se num livro de Suad Amiry, em particular no capítulo “Animal’s Nightmare”, que lhe deu imagens de animais a baterem contra o muro que cerca os territórios palestinianos, por exemplo gazelas, como as que ela também via no Alentejo. Então em 2014 foi à Cisjordânia, e tudo mudou. “Chegar lá é ver que a coisa afinal não é assim tão longe. Aprendi que só há o outro quando é desconhecido.” Enquanto é desconhecido.

 

  1. Antes de ir à Palestina, a ideia inicial de Joana para a exposição era pôr as peças todas dentro de uma jaula, algo que a fizesse sentir-se mal. Indo lá percebeu que o ponto não era esse, o que ela sentia. A exposição não seria sobre ela, mas para o que as pessoas poderiam ver ou sentir. Então vai ter, na cavalariça de Aviz, um amontoado de pás de lata pintadas que não se conseguirão ver bem uma a uma, nem exactamente o que são, todas juntas. “O que quero dizer é que há um sítio muito bonito que as pessoas não vêem, e que só indo lá é que o outro desaparece, e passamos todos a ser a humanidade.” Custa-lhe sempre que alguém diz que devia vender as pás como peças individuais, vê-as como parte de um todo.

 

  1. Uma das coisas que a ida à Palestina lhe deu foi a ideia de que a solução mais justa será “um único estado, democrático, em que os cidadãos são tratados todos da mesma forma”. Não dois estados, Israel e Palestina, porque “isso é estar a gozar com as pessoas”, pensando nos colonatos por todo o território onde quem tem o poder final é sempre Israel.

 

  1. O artista de rua Bansky, que há anos foi um dos primeiros a pintar o muro nos territórios palestinianos, voltou recentemente a Gaza e fez um vídeo que acaba com esta frase: “Se lavarmos as mãos do conflito entre os poderosos e os sem poder alinhamos com os poderosos, não permanecemos neutrais.”

 

  1. Uma arte de resistência, é assim que Joana vê o que está a fazer. Isso passa por tomar decisões, como dificultar a vida de quem tem o poder, boicotando-o. “Se o Museu de Telavive agora me convidassse para fazer algo, eu diria que não, nem pensar. Não quero ter relação com um estado que ocupa outro e é racista, por mais que as pessoas que me convidassem fossem maravilhosas. Para resistir a um estado racista e anti-democrata há sempre pessoas maravilhosas que sofrem, há boicotes. Na África do Sul também foi assim.”

 

  1. Idealmente, diz Joana, essa resistência começaria nos judeus israelitas. A vitória de Netanyahu não mostra que essa resistência esteja mais forte, pelo contrário, mas que então sirva para acordar cá fora. Nunca foi tão difícil alguém dizer que não sabia.

 

(Público, 22-3-2015)

 

 

 

 

 

Estar lá

  1. Mossul, Ninive, Nimrud, Hatra: enquanto os buldozers do ISIS (o auto-proclamado “Estado Islâmico”) avançavam mediaticamente para novos níveis de horror, André Tomé continuou a preparar a sua viagem. Vai partir a 1 de Maio para o Norte do Iraque por causa de uma tabuinha de argila. A tabuinha tem mais de cinco mil anos, o ISIS estará a cem quilómetros, de alguma forma fazem parte da mesma história por contar. E não vale a pena perguntar a André se não tem medo. Sem medo seria estúpido.

 

  1. Conheci André há umas semanas no bar de um amigo onde outro amigo decidira acabar a noite depois de lançar um livro pelo menos tão blasfemo como aquele que Slavoj Žižek lançou há pouco (O Islão é Charlie? Considerações Blasfemas Sobre o Islão e a Modernidade). Foi um daqueles encontros abre-alas. Porque ali, no meio dos copos, André contou-me como começara a escavar na Síria antes de a guerra o empurrar para o Iraque, de onde o ISIS o veio a empurrar, mas não definitivamente: planeava voltar em Maio e eu seria bem vinda.

 

  1. Em 2008, a Síria estava tão quieta que o regime tinha agentes suficientes para vigiarem até repórteres de países insignificantes que resolviam ir passar férias à Síria, como me veio a acontecer. Foi nesse ano que André, então um finalista da Universidade de Coimbra com 22 anos, se estreou a escavar na região. Em 2009 conseguiu financiamento para um projecto mais ambicioso, e voltou à Síria todos os anos até 2011, com a guerra civil já em curso. Em 2012, a violência aproximou-se tanto que a missão foi cancelada. André mudou-se temporariamente para a Holanda, onde fez uma especialização, mas não desistiu da Mesopotâmia. O seu foco era o quarto milénio antes da era comum, quando a escrita começou a ser desenvolvida. Ainda em 2012, decidiu ir ao Curdistão iraquiano com um colega americano. Bem recebidos pelas autoridades locais, visitaram mais de trinta sítios possíveis até acharem vestígios do quarto milénio num pequeno monte, Tel Kani Shaie, junto à aldeia de Bazian, entre as cidades de Suleimania e Kirkuk.

 

  1. O monte deu nome à missão (https://kanishaie.com), uma parceria da Universidade de Coimbra com o Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Património e a Universidade de Pensilvânia, sob a direcção de André Tomé e Ricardo Cabral.

 

  1. Calhou a Ricardo topar com a tabuinha de argila numa manhã de Setembro de 2013. André viu o colega aproximar-se a correr, debaixo de um sol ardente, com aquilo nas mãos. Pela bela impressão cilíndrica de um barco, pessoas a bordo e veados perceberam logo que a peça era importante, mas não toda a extensão do que ali estava, ainda sujo. Porque havia um furinho, não de um lado ao outro, como para um colar, mas como uma marca numérica, muito precoce para aquela época, naquela região.

 

  1. O que então se passava nas grandes cidades a sul, por exemplo a mítica Uruk, era que os mercadores usavam estas tabuinhas como facturas de transacções. A impressão cilíndrica era a assinatura do mercador e o furinho circular podia equivaler a dez unidades, que podem ter sido dez animais, eventualmente vindos de longe. As hipóteses que aqui se abrem têm fascinantes correspondências com o presente. Por um lado, a tabuinha é o vestígio de um sistema que exigia factura, tão burocrático como o estado português, compara André. Por outro lado, será a indicação de que este monte era uma colónia de cidades que já possuíam uma sofisticação burocrática, e, como grandes poderes contemporâneos, conquistavam território para explorar recursos. Possivelmente, Uruk. Mas só analisando a argila se conseguirá saber de onde ela vem, e isso faz parte das tarefas da próxima expedição, em Maio. Os arqueólogos vão e vêm mas a tabuinha fica no Museu de Suleimania.

 

  1. Entre o vídeo dos carniceiros do ISIS a escavacarem o Museu de Mossul e anúncios de destruição em Hatra e Nimrud fui pensando em André, se manteria os planos de Maio. Estive em todos estes lugares em Maio de 2003, o mês que abriu a Caixa de Pandora iraquiana, quando Bush júnior achou que punir Saddam Hussein era um bom argumento oficial para invadir o Iraque: a muralha de Ninive, os pórticos de Nimrud, os templos greco-romanos de Hatra desertos, o Zigurate de Ur antes da ocupação americana. Fora o Museu de Mossul, onde parte era réplica de gesso mas muito era original, vimos pouco do que o ISIS agora fez desaparecer — ou não. O que aconteceu ao certo em Hatra, cidade arqueológica imensa? Por que não há imagens de Hatra se a propaganda do ISIS passa por chocar o mundo com imagens do impensável ainda ontem?

 

  1. Sim, é a primeira palavra que André diz quando lhe ligo esta quinta-feira a perguntar se mantém os planos. Sim, falou com o director de Antiguidades em Suleimania, eles estão prontos para o receber, o bilhete está comprado, ida a 1 de Maio, regresso a 15 de Junho. Neste momento, o que o preocupa é a casa onde a missão tem estado instalada, por ser isolada e muito perto da estrada, muito visível. Não se trata de ignorar os riscos, mas de lidar com eles um a um. “Ontem tive pesadelos pela primeira vez com isto por ter estado a falar com gente que falava nos riscos. Não quero passar a ideia de que somos corajosos. Se o risco for perceptível não arrisco, isto não é o Indiana Jones, se for preciso cancelamos a missão.”

 

  1. Cada missão cancelada é menos que se vai saber. “O ISIS quer que as pessoas se choquem, faz parte do espectáculo, da provocação. Eles querem uma reacção.” Cancelamentos e debandadas são reacções que favorecem a propaganda: o vídeo do Museu de Mossul, por exemplo, foi parcialmente gravado no início de Janeiro, mas apareceu agora, como parte de uma sequência imparável de avanços do ISIS, diz André, tal como o ISIS tem feito dinheiro com antiguidades mas essa não é a maior fonte de rendimentos deles, nem eles são os únicos saqueadores. E no meio deste xadrez impossível de distinguir à distância há muitas agendas: a dos curdos do Norte que não querem perder a hipótese de um estado; a dos iranianos que apoiam o governo pró-xiita em Bagdad; a dos americanos que, doze anos de caos depois, dizem que “largar um tapete de bombas sobre o Iraque não é a solução”, porque “os problemas que alimentam esta guerra são os que estão ligados à governação, à política de inclusão [da população árabe sunita] que o governo iraquiano tem de enfrentar”, para além do perigo de formar uma nova geração de desesperados, que alimentem a recruta do ISIS.

 

  1. Tudo somado, “o importante é ir para lá”, acredita André Tomé. “Incomoda-me que as pessoas partilhem isto no Facebook, que falem no café, mas não se interessem realmente pela história por trás destes vestígios. Ninguém quis saber quem esculpiu os budas que os taliban rebentaram no Afeganistão. Se continuarmos assim não muda nada. As pessoas chocam-se e tudo segue. Há uma grande falta de curiosidade para saber mais, e a única solução é interessar as pessoas no passado, mostrar que há gente que está a fazer este trabalho.” Nem que seja “fazer registos 3D no Museu de Suleimania, neste momento o segundo mais importante do Iraque, para minimizar os danos, salvaguardar informação, estudar coisas que estão lá e nunca foram estudadas”. Porque “não é apenas um sítio, mas um sítio que pode mudar a forma como vemos o início de uma civilização”, que mostra, por exemplo, “como a história se está sempre a repetir”, até às facturas obrigatórias. “Só não havia sorteio de Audis.”

 

(Púbico, 15-3-2015)

O galo da minha aldeia

  1. Acabo de me mudar para uma aldeia onde ouço o cantar do galo ao longo de todo o dia, ora longe, ora perto, está visto que são vários. Também há um sino, talvez para ocasiões especiais porque só o ouvi uma vez, embora a igreja fique já aqui atrás. A escadaria que lá dentro há-de levar ao altar e cá fora leva ao céu é o ponto de fuga de quem sobe a rua perpendicular à minha e ao rio. Volto a ver o Tejo da janela, além das nespereiras e dos telhados, porque esta aldeia está no centro de Lisboa.

 

  1. A minha casa é um pequeno primeiro andar de um pequeno prédio oitocentista. Negros ainda eram propriedade de brancos lá no Brasil quando foi cortada a pedra que hoje, muitas obras depois, separa a sala da varanda. Difícil não pensar nisso sendo tão vizinha do antigo poço para o qual, no começo da escravatura, eram atirados os cadáveres dos negros, a bem das epidemias. A morada gravada nas esquinas evoca essa memória com uma súbita clareza, do ponto de vista de quem se afastou, e portanto vê de novo. Volto a Lisboa após mais de quatro anos a morar fora, quase sempre no Rio de Janeiro, onde a herança da escravatura portuguesa acabou oficialmente em 1888, e não oficialmente, de várias formas, continua por acabar.

 

  1. Uma cidade muda assim consoante de onde vimos. Também o Cristo-Rei nunca me parecera tão perto, e um boneco. Ao mesmo tempo achei que vê-lo o tempo todo, porque toda a casa é praticamente a varanda, era um sinal para enfim acabar um livro interminável que roda aos pés do Cristo-Redentor, lá no Rio de Janeiro.

 

  1. Além dos galos, gatos miam nos telhados, por cima de um canône de escavadoras, britadeiras e martelos em casas que estavam podres, mau para acordar tarde, bom para quem morar, e enquanto vier morar gente estamos a salvo dos tuk-tuk. A minha condição para voltar a Lisboa era uma morada sempre à esquerda do Cais do Sodré, do ponto de vista de quem está de costas para o cristo-rei. Comecei mesmo pela extrema-esquerda, ali para os lados da Ajuda, porque a Ajuda tinha jardins, tinha rio, tinha fama de barata e uma boa distância de Alfama. Mas ao fim de uma tarde a deambular continuava a não ter memória, e a memória que me vinha, a cada esquina, era a da aldeia onde agora escrevo, algures entre a Ajuda e o Cais do Sodré. Não cheguei sequer a ver outra casa, apareceu-me logo esta numa meia-noite em que um amigo acordado coincidiu com um senhorio que saíra para comprar tabaco. Então, na manhã seguinte, uma daquelas últimas de Janeiro depois da vitória do Syriza, vi o boneco do cristo-rei mais pequeno do que uma folha de nespereira, como só se vê suficientemente longe de Alfama, e achei que estava tudo certo.

 

  1. Nunca tinha morado nesta parte de Lisboa, mas aos 18 anos vim fazer teatro num armazém das imediações, e isso alterou toda a minha relação com a cidade, deslocando-a de um eixo para outro, para além do que alterou em mim, ainda agora vejo quanto. Vista de uma varanda, em 2015, sim, é uma aldeia de galos, gatos, sinos, mas descendo tanto há merceeiros do Bangladesh como tascas com cabeças da garoupa ou uma ervanária que vende bolo do caco sem sair do lugar desde 1837. E, num raio de dez minutos a pé, portas que dão para velhas tipografias, portas que dão para novas tipografias, alfarrabistas onde numa manhã sem aviso posso ter esperança de perguntar pelas “Memórias de Adriano”, porque de repente preciso de as oferecer a alguém que vai a Roma. Isto depois de tomar café num café tão velho como a Segunda Guerra Mundial, mas onde na cave, agora, se amassam pães de malte e de alfarroba. Bom café ao balcão por sessenta cêntimos, esse luxo que para qualquer lisboeta é banal, em plena Terceira Guerra Mundial, segundo o amigo com que almocei na Graça, antes mesmo de me mudar.

 

  1. Lisboa está cheia de lixo, de cocó de cão, de andaimes sem passagem, de carros em cima dos passeios, de regras de trânsito sem sentido como aquela voltinha que é preciso dar quando se chega ao Largo da Graça vindo do miradouro. Dormi uns dias na Graça enquanto não achei casa, tentando cuidadosamente não descer a Alfama. Todos os dias me cruzava com velhinhas falando para ninguém, curvadas nos passeios, de saco de plástico na mão. Um dia, ouvindo alguém nas minhas costas, achei que me perguntavam algo mas quando voltei a cabeça era só uma velhinha com um saco que parara no passeio porque havia um pedaço de sol e na rua dela não havia sol. Ela dizia, é que na minha rua nunca há sol e ria. Ruas sem sol com roupa estendida quase a bater no chão. E gente no chão, com tudo o que tem, como aquele sem tecto que mudou para a rua do Século, e agora se estende, perpendicular em relação a quem passa, a ler de barriga para cima. O abandono é dos outros, a soberania dele.

 

  1. Luxo para todos: sol em Janeiro, um cacilheiro, Lisboa vista do Ginjal, ou, do ponto de vista de quem acaba de voltar à sua aldeia, um barco com o mesmo nome que o livro que veio do Rio de Janeiro, probabilidade em um milhão também chamada milagre.

 

(Pùblico, 15-2-2015)

O malabarista do sinal vermelho

  1. Foi Luís Fernando Veríssimo quem uma vez falou no malabarista do sinal vermelho a propósito de quem escreve. Estávamos numa FLIP, a festa literária brasileira que atrai milhares de pessoas a Paraty, cabiam-lhe as honras da abertura, e o que ele vinha dizer à plateia, com a gentileza dos verdadeiros tímidos, era que o malabarismo do sinal vermelho não era a praia dele. Pelo menos, por outras palavras, foi o que ouvi.

 

  1. Quem escreve não tem a ver com a expectativa de quem lê e vice-versa, soberania mútua. Entretanto, no intervalo entre um e outro acontecem festas, feiras, festivais, debates, encontros, apresentações, todos esses sinais vermelhos onde quem escreve sua para não deixar cair as bolas, porque o malabarismo não é a sua praia, além de que, enquanto isso, e sobretudo, não está a escrever. Festas literárias & etc têm, em princípio, a boa intenção de levar os livros aos leitores. O dilema, do ponto de vista de quem escreve, é quando essa boa intenção perpetua o mito dos livros inorgânicos, aqueles que certamente se escrevem sozinhos, sem a baixeza da morte que corre sempre um pouco além de quem escreve.

 

  1. Claro que podemos fazer como Pacheco Pereira, ficar com os tantíssimos, infinitos, livros já escritos, que não dependem mais de qualquer organismo vital, quanto mais do estado social. No limite, expulsar da cidade quem escreva hoje, e portanto amanhã. Mas quero dar um exemplo do contrário, porque tanto estamos cá para dizer sim sim sim no meio do não, como não a quem decide onde está o fim.

 

  1. De 21 de Dezembro a 21 de Janeiro estive entre a Sérvia e a Bósnia, a convite do Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões (IC) em Belgrado. O IC tem diferentes modelos de representação e meios consoante os lugares. No caso de Belgrado trata-se de um posto de leitor, com a dupla missão de ensino do português e programação cultural, a partir de duas pequenas salas na cave da universidade local. A primeira contém uma biblioteca de autores de língua portuguesa, convidada de honra na Feira do Livro de Belgrado de 2011, o que incluiu a tradução para sérvio de duas dezenas de livros. O convite que me levou agora lá estreava outra iniciativa, uma residência literária em parceria com a associação sérvia Krokodil. A proposta era passar um mês na região, sobretudo em Belgrado, mas com eventuais extensões à Bósnia, também abrangida pela programação do Centro, para escrever um conto que seria traduzido e apresentado ainda durante a estadia. A remuneração, um pouco abaixo de mil euros, cobria o tempo da residência, a escrita do texto, uma tertúlia com estudantes e um debate no lançamento. Desde a primeira conversa ao telefone, toda a ideia me pareceu tão clara quanto livre, na forma e no movimento. E creio que só de algo assim poderia resultar um texto que, falando dos piores horrores sérvios, foi apresentado antes de mais a sérvios, na Sérvia.

 

  1. Desse conto fez-se uma plaquete com uma tiragem de 500 exemplares fora de mercado, o que significa que o texto tem uma vida além da residência. Mais, há o projeto, depois de uma sequência de residências, de reunir os contos em livro. É possível discutir se, entre o tempo inicial de pesquisa e a fase já de tradução e produção, uns dias não é pouco para escrever algo, para além, claro, de se poder discutir a relevância do resultado, ou se é desejável que haja um resultado imediato. Mas se dou um exemplo pessoal é por poder falar por ele, acentuando o ponto que me parece essencial: como o estado pode apoiar a criação sem coacção, sem propaganda e sem desperdício em malabarismos.

 

  1. Durante décadas, quem escreveu em Portugal ou tinha recursos ou não teve outro recurso. Uns, diplomatas, advogados, médicos, funcionários públicos ou mais ou menos herdeiros, outros passando fome. Seja como tenha sido, quem os ia convidando para aqui e para acolá nunca lhes pagou porque era assim, escrever não era trabalho com que se ganhasse a vida, por excesso, defeito ou princípio. Assim se vulgarizaram os textos não pagos, aos quais já dediquei um par de crónicas, e de que nesta não me ocupo. Mais ainda simples idas, simples falas, simples malabarismos: pois se escrever não é trabalho, andar daqui para ali, falar daqui para acolá menos ainda. Mas em 2015 há um bom punhado de gente que quer ganhar a vida a escrever, e tanto mudou, na multiplicação dos malabarismos, que era bom que pelo menos quem está à frente de dinheiros públicos pensasse em formas de fortalecer a literatura que, idealmente, não contribuissem para acabar com ela.

 

  1. Viver da escrita já é um malabarismo em que quem escreve tenta salvar o tempo do dinheiro para poder escrever. Se depois esse tempo salvo for todo dado a falar sobre os livros que entretanto não estão a ser escritos, nem se escreve nem se ganha dinheiro para poder escrever. Então, por cada cinco câmaras municipais que neste momento estejam a pensar em encontros literários, daqueles que pagam deslocação e estadia a quem escreve, seria óptimo que pelo menos uma pense em residências, em encomendas, em bolsas, em alternativas que permitam a quem escreve continuar a escrever. Daí resultarão livros, textos, ou nada para já, ou nada nunca, dependendo do acordo e de cada um. O fracasso, como o silêncio, é parte da escrita, tantas vezes toda a parte.

 

  1. Disse cinco para um, o que dá sobra bastante para leitores, acho e espero. Que nada do que está atrás se confunda com o encontro entre quem escreve e quem lê, tantas oportunidades extra-mercado, cada vez mais, para isso. E o resto, entre mesas, voltas e passeios, é para dar aos amigos.

 

 

(Público, 1-2-2015)

Jugo-nostalgia

  1. O voo Lisboa-Belgrado acabou na véspera de eu deixar Belgrado. Parece que havia um trânsito forte de Belgrado para Lisboa mas não o inverso. É verdade que quando alguém em Belgrado pergunta de onde somos, ah, Lisboa, abre-se uma luz. Belgrado tende a achar-se uma cidade deprimente, o contrário de Lisboa (na imaginação de Belgrado). Nunca tinha estado numa cidade que se achasse deprimente enquanto seduz, sem remédio, quem chega. Belgrado é tão o contrário de uma cidade deprimente quanto o Rio de Janeiro, mas com muito menos ajuda dos deuses, que são todos brasileiros no capítulo da auto-estima. A vibração virá da música (grande música), ou a música vem da vibração, no Rio como em Belgrado. Aparecem-me as duas num mano-a-mano porque vim de uma para outra, do Verão para o Inverno, e Belgrado só foi recuperando dessa desvantagem, numa cronologia de sol, neve, chuva e nevoeiro. Talvez só uma cidade assim pudesse ter sido a capital do comunismo cool. A Jugo-nostalgia é a sua feira da ladra, Tito o seu rei.

 

  1. Também nunca tinha visto um Memorial como o de Tito, em que um ditador fosse descrito com glamour pela democracia que é o seu futuro. Dos fatos Dior aos mais de oito mil filmes que terá visto, ao ritmo de um por noite, Josip Broz Tito sai-se bem do futuro. Há mesmo um filme recente sobre esta cinedependência, em que o projeccionista que a serviu é um dos protagonistas. Além de que Tito fotografava compulsivamente, e mantendo a cigarrilha acesa. Pasmei frente à vitrina em que aparecem as câmaras dele, 35 mm e polaróide. Carambolas, tinha uma SX70 igual à minha.

 

  1. Que o erro é onde a sorte está, canta Rodrigo Amarante nos céus entre Belgrado e Lisboa, de onde escrevo esta crónica, exactamente um mês depois de ter voado na direcção contrária. Ou a sorte é onde o erro acerta? Os primeiros dias que passei em Belgrado troçavam do Inverno, céus dourados, verdes prados no Memorial de Tito. Consegui antecipar-me à multidão de gregos que também subia a colina (embora os campeões da Jugo-nostalgia sejam os eslovenos, excursões e excursões, explicaram-me). É a mesma colina onde Tito passou os últimos anos, antes de morrer em 1980. Ergueram-lhe uma espécie de jardim de Inverno, conhecido como Casa das Flores. O visitante entra pelo Museu de História da Jugoslávia, segue para a Casa das Flores, onde está o túmulo, e pode visitar ainda o velho museu que aloja os presentes oferecidos ao mito, dos confins do Montenegro à Etiópia. Tudo isto cercado por bosques e a uma distância estratégica da malha urbana. Belgrado aparece em fundo, numa espécie de fumo, aos pés de Tito.

 

  1. Não só o prado está verde como há rosas vermelhas ao longo do caminho que leva ao túmulo, esculturas de moças carnudas e desnudas e, imponente, em ferro, o próprio Tito, nas suas vestes de Marechal, um passo à frente do outro, braços atrás das costas, fronte curvada em profunda reflexão. Se agora o visitante voltar a cabeça na direcção de Belgrado, vai vê-lo num grande painel fotográfico que decora as traseiras do museu, a desfilar em carro aberto, papelinhos. E, no painel do lado, Tito como anfitrião de Richard Burton (fase António & Cleópatra). Só estilo.

 

  1. Entrando na Casa das Flores, o túmulo está ao centro, mármore branco, letras de ouro, plantas em volta. É preciso recuar para ver, em plano secundário, o túmulo de Jovanka Broz, a mulher que foi viúva durante 33 anos, porque só morreu em 2013. Em Belgrado correm histórias de como Jovanka, suspeita de conspirações, foi deixada a uma quase miséria, uma quase-prisão domiciliária, herdeira de nada, à semelhança, aliás, dos filhos de Tito (com mulheres anteriores). Segundo a Jugo-nostalgia, Tito amava o luxo mas não a propriedade. Pelo menos não a ponto de ter o que deixar aos filhos. Viveu para o usufruto.

 

  1. E que usufruto. Do Taj Mahal a Luxor, pirâmides do Cairo, e de Teotihuacan, estrelas de Hollywood, rubi na gravata, linhos, sedas, écharpes: Tito viajou, Tito recebeu, Tito, o Não-Alinhado, não era nem URSS nem EUA. O Memorial mostra tudo isto em vitrinas cheias de objectos e fotografias, sem esquecer os bastões que todos os anos os jovens atletas entregavam ao presidente, depois de calcorrearem a Jugoslávia, género estafeta, chama olímpica, de mão em mão. E uniformes, smockings, cartolas, sapatos, chapéus. Os egípcios também enterravam assim os seus reis, metendo tudo dentro da câmara funerária.

 

  1. Nessa tarde já não tive tempo de ver os dois museus. Voltei então na véspera de Ano Novo, quando o frio caíra uns 20 graus, nevara sobre Belgrado e toda a colina era agora branca, incluindo o anfiteatro ao ar livre onde, no Verão, acontece um festival de literatura. A exposição em destaque no Museu de História da Jugoslávia tinha uma pergunta no título: “They never had it better?” Jugo-nostalgia no seu melhor, suma retro do quotidiano entre 1950 e 1980, dos telefones às mesas de fórmica, das férias na neve (Bósnia, Sérvia, Montenegro, Eslovénia) às praias da Croácia, cartazes do 1º de Maio de 1974 que podiam ter saído das mãos de Andy Warhol, os eletrodomésticos domésticos, orgulho da produção nacional, tanto quanto o mítico Fića da Zastava, essa versão jugoslava do Fiat 600 que agora se vende como estampa de t-shirts.

 

  1. Subindo para o velho museu, o nome de Tito aparece bordado em toalhas, em almofadas, em meias de lã tricotadas nos quatro cantos da Jugoslávia. Não era uma falsa devoção, era uma devoção. E a cada nono filho, o ditador tornava-se padrinho. Os amigos que me deixaram no museu voltam para me apanhar, descemos pela neve para um café. Ela, que nasceu depois da morte de Tito, conta como em criança ainda cumpria o luto pela sua morte. Ele, que era adulto na morte de Tito, conta que, quando a Jugoslávia se desfez num dominó de guerras, a neta de Tito foi para o cerco de Sarajevo e ficou lá durante três anos, a trabalhar como médica. É uma bela manhã de neve, a última de 2014.

 

 

(Público, 25-1-2015)

Paris-Srebrenica

  1. Há um ruído extremo a que só responde a mudez. Seria como falar num funeral onde gente que nunca conviveu com o morto disputa o luto com gente que atira mortos para debaixo do tapete. O horror do que acaba de acontecer, do que acontece em contínuo e do que se anuncia confluem num silêncio. Foi o que se passou comigo depois do ataque ao “Charlie Hebdo”.

 

  1. Quando o ataque aconteceu eu estava fechada em Belgrado a escrever. Tinha vindo de Sarajevo há dias e ia para Srebrenica dentro de dias, dois símbolos da guerra na Bósnia. Passavam vinte e oito anos desde que a minha carteira de jornalista fora emitida. O último livro que publiquei não teria saído na ditadura. Liberdade de expressão não é este mês de Janeiro, nem um emprego, é a vida.

 

  1. As capas do “Charlie Hebdo” nunca me fizeram rir, nada daquilo me interessa e há tanta coisa interessante para ler, como haverá gente que gosta de ler o “Charlie”: tudo isso é irrelevante para o horror de 12 pessoas executadas numa redacção porque fazem um jornal satírico. Então, curvo a cabeça perante a sepultura de cada uma, minha camarada de vida. O horror destas mortes existe autónomo, estanque. Não é atenuado por nada e não exclui nada. Horror puro.

 

  1. Os assassinos da equipa do “CH” (e, depois, do ataque à mercearia “kosher”), sim, têm passado, contexto, tal como a França, a Europa ou aqueles chefes-de-estado unidos na compaixão global, uma frente tão inclusiva que não excluiu assassinos de estado. Charlie realmente não merecia que Netanyahu fosse Charlie. Fora essa frente, e mercenários em geral, bom ver tanta gente junta pela liberdade. A liberdade de expressão sai mais forte de tudo isto, quero crer, a começar pelo “CH” pós-matança ter saído com um Maomé a dizer “Je suis Charlie”.

 

  1. Escrevo esta crónica de Srebrenica onde em Julho de 1995 a Europa deixou que 8372 homens fossem separados das mulheres e crianças e sistematicamente mortos apenas por serem muçulmanos. Aliás, “8372…” diz a pedra do memorial, porque 8372 era o número de corpos identificados no momento em que a pedra foi lá posta. Entretanto, dezenas de outros corpos continuam a sair do puzzle da antropologia forense. Em Janeiro de 2015, em Srebrenica, vejo muitas sepulturas provisórias posteriormente acrescentadas, placas de plástico verde à espera dos marcos em mármore que compõem esta floresta única. Foi o maior massacre europeu desde o Holocausto, genocídio, decidiu finalmente o Tribunal de Haia. Aconteceu há dezanove anos e meio, no sudeste da Europa, perante europeus: os holandeses capacetes azuis da ONU, que a ONU entendeu não reforçar, quando era evidente que não seriam capazes de conter as tropas sérvias de Ratko Mladić, neste momento ainda réu em Haia por crimes contra a humanidade e genocídio.

 

  1. Perante europeus e entre europeus, porque “o mundo muçulmano” não é um lugar fora da Europa. Se mundo muçulmano é onde houver um muçulmano, a Bósnia tem uma maioria muçulmana há séculos. A Europa integra o mundo muçulmano, o mundo muçulmano integra a Europa. Os políticos podiam começar por aí, quando falam de “integração” nos “valores europeus”. É que segundo esses tais valores, um muçulmano da Bósnia não é menos europeu do que a senhora Merkel.

 

  1. Não fui eu que falei da matança de Paris, foi ele, o jovem imã da mesquita central de Srebrenica. Também não tínhamos combinado nada. Eu descera a colina com um amigo, entre todas aquelas casas de tijolo em bruto que são a paisagem semi-reconstruída da cidade, uma beleza de encostas alpinas habitada por quem não tem dinheiro para acabamentos. Chegámos à mesquita, mesmo ao lado da igreja ortodoxa, num largo coberto de neve, pouco antes do pôr-do-sol. Mas quando pressionei a maçaneta, o portão abriu. E daí a nada apareceu um rapaz muito alto de gorro, como todos aqui no Inverno. Era o imã, vinha para a oração, convidou-nos a tirar as botas, entrar. Depois chegou um pequeno ancião, fisicamente o oposto do imã. Ali ficámos sentados, a assistir à oração na mesquita principal de Srebrenica: o jovem imã e o velho fiel, voltados para Meca, cercados pelo vazio.

 

  1. Mas à sexta-feira a mesquita enche, ressalva o imã, que se chama Ahmed Hrustanovic e tem 28 anos. Em 1995 estava a salvo com a mãe a dezenas de quilómetros daqui, era criança. Já os homens da família, foram todos executados pelas tropas de Ratko Mladić: pai, quatro tios, dois avós. Perfaz sete parentes Hrustanovic gravados na grande floresta funerária de Srebrenica. Não é um apelido raro.

 

  1. Entre os que fugiram, os que foram deportados e os que morreram, não sobraram muitos muçulmanos em Srebrenica, em 1995. Depois dos acordos de paz, a Bósnia foi dividida em duas entidades, Federação da Bósnia e Herzegovina e República Srpska, onde existe uma maioria sérvia. É nessa metade que está Srebrenica, muito perto da fronteira com a Sérvia. Ainda assim, apesar do massacre, e da firme presença sérvia, muitos muçulmanos foram regressando ao seu pedaço de terra, e hoje Srebrenica tem uns 3500 muçulmanos e uns 3500 sérvios. A relação é cordial, diz o jovem imã, ele faz compras em lojas sérvias, só não consegue esquecer que são sérvios. Mas há um mês um amigo casou, ele muçulmano, ela sérvia, como acontecia tanto antes da guerra, e hoje acontece tão menos. Hoje é pior, claro, e depois de Paris talvez pior. É o jovem imã quem fala de Paris, quem chama loucos aos assassinos, quem teme o efeito disto na vida dos muçulmanos.

 

  1. Depois de quem perdeu a vida, ninguém perdeu tanto com Paris como os muçulmanos. A vida de cada um vai ficar um pouco mais difícil. Em compensação a vida da família Le Pen ficará melhor, e com ela a dos xenófabos em geral. Sobretudo a vida das milícias recrutadoras estilo Boko Haram-ISIS-Al Qaeda, a quem só interessa que a vida dos muçulmanos na Europa se torne cada vez mais difícil. Carne para canhão. Este é o horror que se anuncia, acrescentado ao horror contínuo.

 

  1. Antes do genocídio, a ONU garantira aos muçulmanos que nada lhes aconteceria, aprovara até uma resolução declarando Srebrenica Zona Segura. Foi fazer companhia na gaveta a todas aquelas resoluções que o governo de Israel ignora, e o que é que a Europa, por acaso ex-colonizadora (França, Inglaterra) de todo aquele território israelo-palestiniano & vizinhanças tem feito por isso nas últimas décadas? Enquanto a liberdade de expressão é um bem oficial em Israel (não contando com os obstáculos à liberdade de movimento e circulação de jornalistas), uns milhões de palestinianos nunca tiveram liberdade de circulação e movimento no seu tempo de vida, dos pais ou dos avós. Este é o horror antes e além da compaixão global, até porque ninguém aguenta emocionar-se durante tanto tempo.

 

  1. Apesar de tudo, o jovem imã de Srebrenica continua a deixar a porta aberta. No fim da conversa, já bem caíra a noite, aliás, voltou à roupa de Inverno, ao gorro de lã, e despediu-se, deixando-nos ainda descalços, com a mesquita toda por nossa conta.

 

 

(Público, 18-1-2015)