Não somos deuses nem animais

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Por Bárbara Rosa, Jurista, membro da direcção da TIAC e co-autora do blogue Má Despesa Pública

Daniel Innerarity defende, citando Aristóteles, que a nossa condição política é algo que nos permite fazer um grande número de coisas que seriam impossíveis se vivêssemos como os deuses ou os animais. E a política não é sinónimo de partidos pois vai muito além deles, sendo – e passe o singelo resumo – a ciência que organiza e administra as instituições. Nas palavras do filósofo e politólogo basco, a democracia institucionalizada é aquela que transforma a abstracção “povo” numa figura visível, que se materializa e torna-se operativa e cuja vontade cabe verificar. Às instituições cabe reconhecer a pluralidade da sociedade [o “povo”] e proteger os cidadãos – elas existem para garantir os direitos constitucionais. Uma democracia precisa de procedimentos, regras e representação para se defender da irracionalidade. Essa representação, a discussão pública e os procedimentos institucionais servem para fixar os contornos da tal realidade plural denominada “povo”. A democracia, enquanto sistema que melhor reflecte as preferências individuais, é de – e para- todos e eu sinto algum desconforto ao ver tanta boa gente dedicada à promoção/venda de ideias anti-política e que apenas servem para atirar os portugueses para o banco dos suplentes do jogo que é a democracia. Este jogo democrático, do qual somos todos titulares, o espaço público, convoca todos os cidadãos e ninguém deve viver à margem dele. É certo que eu não oiço um único cidadão a dizer que não quer saber deste país e escuto demasiados a afirmarem que nada querem com os partidos e descrentes nas instituições. Curiosamente, a maturidade democrática que não se reconhece aos partidos manifesta-se na sociedade e sob diversas formas – nos espaços físico e virtual. Nós, os cidadãos, estamos melhor informados e, por isso, somos menos tolerantes à má governação e queremos saber mais sobre a vida do Estado; desconfiamos das instituições porque a crise económica aprofundou a percepção de que elas não cumpriram o seu papel democrático – a construção de uma sociedade mais justa e igual. Os governos defraudaram os cidadãos e os partidos mostraram-se incapazes de cumprir as expectativas de representação, orientação e configuração da vontade política que sobre eles recaem e que justificam a sua existência. Precisamos de outra política.

A crise política em que vivemos não é mais do que a morte decretada da forma de fazer política que reinou nas últimas décadas, mas não significa o fim da política. Precisamos da política para articular, valorar e tornar compatíveis as múltiplas aspirações da sociedade. Sem programas políticos completos não existe construção social, pois esta não se resume à soma das – nem sempre – legítimas reivindicações dos diversos colectivos sociais. E que não se perca tempo a defender a democracia directa e a fantasia da “autodeterminação democrática”, o fim dos partidos ou qualquer outra ideia de «trincheira apolítica». Ao invés, urge aprofundar a nossa democracia e a consciência da inevitabilidade de ser governado por outros. No sistema de democracia representativa, os cidadãos não governam mas têm o poder-dever de participar na gestão e orientação do país e tal só é possível se ampliarmos o espaço público – e a transparência do sistema político é um precioso instrumento para isso.

Já que não temos eleições todos os dias (felizmente), reivindiquemos melhor representação, mais transparência na governação, maior controlo, renovação de quem dirige, em suma, reivindiquemos uma melhor democracia mas não abandonemos a lógica política, sob pena de envenenarmos (ainda mais) o sistema político e assim darmos espaço aos extremos, aos “tea parties” da esquerda e da direita, como ensina Innerarity. Deixemos de ser um fracasso colectivo e reivindiquemos todos numa lógica política, por favor.

4 comentários a Não somos deuses nem animais

  1. “Daniel Innerarity defende (…) a política não é sinónimo de partidos pois vai muito além deles, sendo — e passe o singelo resumo — a ciência que organiza e administra as instituições.”

    Pois bem, que se vise “o aprofundamento da democracia participativa” consagrado no Artº 2 da CRP, que se possibilite a entrada na AR a independentes com perfil adequado, idóneos, íntegros e transparentes, capazes de integrar os actos legislativos/governativos e respeitem O PRINCÍPIO DA PROSSECUÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO E DA PROTECÇÃO DOS DIREITOS E INTERESSES DOS CIDADÃOS. Então sim, falemos de democracia. Tudo o resto é … “violinos”.

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  2. Uma visão simplista, que nos volta a atemorizar sobre o fim das instituições. Esquece que a “autodeterminação democrática” é tudo menos “apolítica”, é apenas outra forma de fazer política. Ser “governado por outros” não é, de todo, uma inevitabilidade. É apenas o discurso do poder, ou de quem se conforma. A lógica política tem de ser reinventada, o voto e 4 em 4 anos é claramente insuficiente e as “instituições que nos governam” na verdade servem-se a si próprias e aos seus membros, influenciadas por grupos de interesse. Votar, sim, continua a ser fundamental. Mas o que o seu texto ignora, ou rejeita, é que reivindicar a democracia pode implicar precisamente o abandono da lógica política atual.

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