Por João Paulo Batalha, membro da Direção da TIAC
No meu último dia de aulas da quarta classe fecharam-me com os outros finalistas da escola primária numa das salas. “Agora vão para o quinto ano, para uma nova escola, e não vamos estar lá para vos proteger”, explicaram os professores. Era a hora de sabermos o que era a vida. O que se seguiu foi um vídeo sobre os malefícios da droga que me ficou até hoje na memória como uma peça notável de propaganda terrorista: além das imagens explícitas de corpos destruídos por anos de consumo de drogas duras, a narrativa era paralisante. Falaram-nos de adultos suspeitos à porta das escolas a oferecer doces contaminados, de raptos e horrores vários, de como um simples cigarro era a entrada para uma espiral de perdição irreversível. Eu, que já sofria de uma timidez anquilosante, saí da escola com medo do mundo.
Nos Estados Unidos, ainda hoje, algumas almas puras tentam ensinar aos adolescentes que os contracetivos são obra do Demo e que a única forma de evitar doenças e gravidezes indesejadas é a abstinência – resultado: os EUA são um dos países do mundo com maiores taxas de gravidez adolescente.
Em Portugal, surpreendentemente, ninguém menos que o presidente do Tribunal de Contas parece ter encontrado os méritos da virgindade e do decoro. Em entrevista à Visão, Guilherme de Oliveira Martins notou que “a corrupção começa no pequeno favor, muitas vezes lícito”. A génese do mal, explicou o também presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC), é a relação de amizade que se traduz na cunha, “no pequeno favor que a própria sociedade complacentemente aceita. Mas acaba no crime”.
Nesta mesma linha, o CPC promoveu no ano passado um concurso de vídeos junto dos alunos do segundo e terceiro ciclo do ensino básico (precisamente a idade que eu tinha quando me explicaram que a minha vida era uma queda imparável para a destruição e o vício). No vídeo promocional da iniciativa, imperdível, a mensagem é inequívoca: “Tu vives lado a lado com a corrupção”. A ilustração, nem tanto: uma estudante desenvolta puxa de uma cábula durante um exame, enquanto um reformado astuto tira um ás do bolso para vencer a bisca no banco de jardim.
Outra história de infância: criado em Cascais (um concelho com mais fama que proveito), cresci no meio de uma expansão urbanística e populacional vertiginosa – outra história para a qual a corrupção também é chamada –, sem equipamentos públicos à altura. O hospital de Cascais, subdimensionado e mal apetrechado, era a antecâmara do Inferno. Sem o sistema de triagem de Manchester, hoje generalizado, a ida às Urgências era um bilhete para umas boas horas de espera, independentemente da gravidade da maleita.
Felizmente para os meus pais (então miúdos de 20 e tal, trinta anos), havia uma prima (há sempre uma prima) que trabalhava nos serviços administrativos do hospital. Quando um dos miúdos adoecia de repente, as opções eram uma madrugada inteira à espera nas Urgências ou um telefonema estratégico, à procura de uma facilidade. Nem sempre era possível ajudar, mas quando era, ajudava-se. Eu, corrupto, me confesso.
Na ótica do presidente do Tribunal de Contas, um miúdo com febre e dois pais alarmados é a antecâmara da corrupção. Suponho, por essa ordem de ideias, que Jorge Coelho ou Ferreira do Amaral – ministros das Obras Públicas que concessionaram PPP ruinosas e foram mais tarde trabalhar para os concessionários dessas mesmas PPP ruinosas – nunca se teriam metido nessa dúbia posição se ao menos lhes tivessem ensinado a não copiar nos exames e a sentarem-se direitinhos na missa.
“Os cidadãos não têm talvez uma consciência plena de que depende deles o combate à corrupção”, reflete Guilherme de Oliveira Martins na mesma entrevista à Visão. Tem toda a razão. A questão é saber se o papel da cidadania é defender a moral e bons costumes, à boa velha maneira (no tempo do Salazar andava tudo na linha) ou se é exigir instituições que funcionem, mecanismos de controlo que controlem e responsabilização efetiva dos prevaricadores.
Portugal tem um problema de complacência com a corrupção. Os cidadãos sentem-se tentados a votar no autarca que “rouba, mas faz”; a meter uma cunha para tornear um sistema feito para entravar; a deixarem-se afundar na impotência e no desespero. Sem dúvida que precisamos de educar os cidadãos. Mas pior, e mais urgente, que a complacência social, é a complacência institucional. É a naturalidade com que a justiça falha, a impunidade reina e organismos como o Tribunal de Contas apontam ataques rotineiros às finanças públicas sem que ninguém seja responsabilizado.
Portanto, atacamos a corrupção na bisca ou no orçamento? Baseamos uma estratégia de combate à corrupção no moralismo e na “pedagogia” oca, ou pomos as instituições a funcionar? Guilherme de Oliveira Martins parece ter feito a sua escolha. Temo que tenha feito a escolha errada.
Nota final: fez-se entretanto um novo hospital em Cascais. Está bem dimensionado, tem um sistema de triagem baseado em critérios de urgência clínica e dá resposta adequada à população. Já ninguém ali mete cunhas; não precisa: a instituição, que não funcionava, passou a funcionar. É curiosamente, uma PPP, que o próprio Tribunal de Contas diz estar orçamentada de forma irrealista, com despesa escondida. De quem é a culpa? Talvez se os reformados não fizessem batota à bisca…
andar a volta pode saber bem mas não se avança muito. A mistura de politica coma as benesses atribuidas e até auto-atribuidas parece-me ser a genese da ineficiencia e até complacencia por manter o tacho publico acessivel a Brigada das Colheres que como se sabe aumentou astronomicamenete de governo para governo. Para quando se juntam vontades para separar na sede e eficazmente as funções em vez de clamar aos peixes ;sabe muito bemaoego mas não passa disso = falar de mudançapara deixar tudo na mesma, é o que as vezes parece
Então deve começar-se pelos grandes delitos esquecendo os pequenos (por enquanto)?
Quando é que, depois, descemos para os mais pequenos?
Elucide-me, para eu saber até quando posso ir colocando os meus amigos a trabalhar comigo na Câmara Municipal.
Não devo ter sido claro, caro António Santos. Toda a corrupção, fraude, favorecimento e abuso é inaceitável e deve ser combatida sem tréguas – a grande e a pequena. Mas o combate sem tréguas só se faz com instituições capacitadas, que respondam ao país pela eficácia do seu trabalho (ou falta dela).
Dizer que a corrupção é uma maleita cultural e que a culpa está nas “mentalidades” só serve para iludir o verdadeiro problema: as instituições que deviam estar a funcionar não funcionam.
O facto das instituições não funcionarem é um claro indício de que a corrupção é generalizada e aceite. Poucos a denunciam.
Mas temos que mudar as mentalidades. O facto de toda a gente aceitar a cunha, o favor, o não passar fatura, e afins, com total complacência é o ambiente ideal para a corrupção generalizada, de alto a baixo.
Não consigo aceitar que os governantes apenas se preocupem com os grandes crimes, quando por todo o lado vejo economia paralela e cunhas para dar e vender.
Portanto para mim, tudo começa no jogo da bisca!