Por Luís de Sousa, presidente da TIAC
O acórdão do Tribunal Coletivo da 6ª Vara Criminal de Lisboa sobre o caso das contrapartidas ligadas à compra dos submarinos é uma boa ilustração de tudo o que vai mal na justiça portuguesa. Em matéria de Direito e Processo Penal, desde a sua doutrina à sua efetiva aplicação, a única coisa consistente na forma como os tribunais julgam crimes de colarinho branco é o fracasso. O acórdão sobre o caso das contrapartidas deixa dolorosamente a nu seis pecados mortais da justiça:
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Fica claro que nem o MP, nem muito menos os Tribunais têm capacitação técnica-científica para investigar, acusar e julgar crimes de colarinho branco com esta complexidade. Recorrer a expertos para colmatar falhas em conhecimentos especializados é expectável; não ter capacitação técnica-científica própria nas áreas mais vulneráveis à corrupção e outros comportamentos fraudulentos é um erro estratégico.
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Não existe um estatuto específico para expertos ou colaboradores com a justiça que estabeleça regras e critérios de seleção e screening, institua regras e procedimentos de gestão de conflitos de interesses (aparentes, potenciais ou reais) e que governe a sua relação com as autoridades contratantes, os vários intervenientes no processo, a comunicação social e o público em geral. As disposições do código do processo penal sobre as peritagens, e a jurisprudência sobre eles feita, são insuficientes: estão datadas, pensadas para um tipo de peritagem mais laboratorial e desadequadas para cobrir áreas de políticas públicas de enorme complexidade onde o saber disponível é limitado e/ou concentrado num núcleo restrito de pessoas ou entidades.
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Não há um fio condutor das várias fases de um processo judicial – desde a investigação, passando pela instrução até à acusação e julgamento. O Estado de direito está assente num princípio de recurso e numa teia de garantias e contrapoderes que evitem o risco de arbitrariedade dos agentes da justiça. Porém, isso não pode servir de refúgio para a inoperância e desresponsabilização. Cerca de dois terços dos processos de corrupção e crimes conexos são arquivados por insuficiência de prova. A desculpa de que os crimes são difíceis de provar é inaceitável num Estado de direito, pois assume como normal a incapacidade de atuação da justiça. No caso em apreço, o Tribunal entendeu desconsiderar uma peritagem que foi solicitada pelo MP, em concreto pelo DCIAP (órgão com competência específica neste tipo de criminalidade) e posteriormente valorada pelo Tribunal de Instrução Criminal, sem que tivesse sido apresentado qualquer parecer pericial que contrariasse o trabalho recolhido pelo MP. A peritagem efetuada ficou sujeita à livre apreciação do juiz, sem haver outra em sentido contrário, o que é completamente rocambolesco e denota um total desnorte da justiça.
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O Tribunal, na sua sentença, entendeu desconsiderar a peritagem realizada por dois peritos individuais que possuíam experiência e conhecimentos especializados adequados para avaliar as operações em apreço. Com refere o acórdão, “declara-se a invalidade formal e material da perícia elaborada nestes autos, desconsiderando-se totalmente a mesma enquanto tal, não sendo valorado tal meio de prova.” Se esse aporte técnico-científico foi desconsiderado, como é que o coletivo de juízes conseguiu emitir juízo sobre uma matéria para a qual não tem conhecimento especializado próprio? A única leitura que se pode fazer é que não sabendo para que lado chutar, chutaram para canto. De facto, ao desconsiderar a peritagem, o tribunal entrou no modo de funcionamento por defeito da justiça portuguesa sempre que estão envolvidos grandes empresários, banqueiros, políticos e altos cargos públicos, ou por outras palavras, os poderosos: invocar insistentemente a falta de prova, levantar inúmeras incertezas e cortinas de fumo, relativizar as intenções dos agentes e empurrar a resolução dos diferendos para a arbitragem, onde os privados se safam e o Estado se enterra. No entender do Tribunal, jamais haverá burla ou tentativa de burla em situações onde os agentes obrigados à realização de contrapartidas apresentam como contrapartidas negócios que não podem ser considerados como tal. Esta interpretação representa um recuo na moralização dos comportamentos e na governança das relações entre a administração e os agentes privados, em particular no que concerne a fornecimentos de equipamentos militares e vai ao arrepio de tudo aquilo que se tem procurado construir em matéria de transparência da contratação no sector defesa no espaço europeu.
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O Tribunal não só considerou não ter sido demonstrada qualquer burla ou dano ao Estado português, como também considerou que “neste momento, estamos, ainda, perante um contrato que está em plena vigência, pelo que se afigura, também, que não é, ainda possível, a afirmação de prejuízo”. Isto significa que, no entender do Tribunal, o Estado ainda vai a tempo de não homologar as ditas contrapartidas e de renegociá-las através do Ministério da Economia. Este argumento é excecionalmente perigoso e é incompreensível que seja acolhido num Estado de Direito em pleno século XXI. Na prática, tal significa que, sempre que um privado seja confrontado com a apresentação de documentação ou de uma pretensão falsa, pode legitimamente negociar com o Governo as suas obrigações. Se dessa negociação resultar a reformulação das obrigações incumpridas, deixa de haver a existência de dano. Algo de muito mau vai na justiça quando um tribunal que levantou tantas questões sobre a imparcialidade de uma peritagem validada por um juiz de instrução, possa considerar como normal que um Governo num Estado de Direito se disponha a negociar com privados questões que são objeto de processos criminais, em pleno decurso do julgamento e que aceite essas negociações para desconsiderar a existência de um dano.
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Por último, perante tudo aquilo que foi dito no acórdão, só um tolo arriscaria a colaborar com a justiça num contexto desregulado de proteção de denunciantes e expertos. A TIAC chamou à atenção, vezes sem conta, as autoridades nacionais, o legislador e as instâncias internacionais (através da avaliação da OCDE e do GRECO e, mais recentemente, através do relatório da Comissão Europeia). Até à data, nada foi feito. A recente proposta do governo vai no sentido contrário daquilo que falta fazer, o que denota um total desconhecimento destas matérias.
Este artigo é uma versão desenvolvida do texto publicado na edição de 1 de março de 2014 do jornal Público
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Já não acredito nos Tribunais portugueses em casos como êste. E outros! Portanto concordo com vascosta: vamos para um Tribunal Internacional – que seja fiável !
nada foi feito e nada será feito enquanto os eleitos forem parte interessada nas verbas em jogo. Ou separamos a gestão profissional da gestão politica ou o combate a corrupção há-de ser sempre uma miragem ou um conto imaginario.
Excelente artigo,por aqui se percebe porque está este País falido.PARABENS.
Deviamos pedir ao tribunal Innternacional de Haia, para julgar este caso, pois os tribunais portugueses nao tem competencias tecnicas para lidar com estes casos sufisticados.