Por João Paulo Batalha, membro da Direção da TIAC
A diplomacia, é sabido, faz-se mais de fins do que de princípios. Na defesa dos seus interesses estratégicos, os Estados agem geralmente por calculismo, mesmo quando isso implica abandonarem na sua política externa os valores que dão como inegociáveis no plano interno. O medo de melindrar parceiros úteis cala a vergonha de fazer negócio com gente pouco recomendável. E se isto já é assim em circunstâncias normais, quando a política externa se faz aos tropeções, sem visão e de chapéu na mão, mais fácil é perder de vista um sentido mínimo de decência.
Na última semana, dois sinais de alerta deviam ter despertado as consciências nacionais. Na sexta-feira passada, a eurodeputada Ana Gomes organizou uma audição, em Lisboa, de dois cidadãos angolanos vítimas e testemunhas do sistemático abuso de direitos humanos e da corrupção institucionalizada na exploração diamantífera em Angola – um negócio multimilionário nas mãos de uns quantos generais e agentes próximos do poder político de Luanda.
Sujeitos a todo o tipo de pressões e ameaças, o soba (chefe tradicional) Mwana Capenda e a cidadã Linda Moisés da Rosa, que perdeu dois filhos às mãos de autênticos esquadrões de morte na região das Lundas, vieram a Lisboa revelar, com uma coragem extraordinária, as práticas de abuso de um poder instalado que trata as riquezas naturais angolanas – e os próprios cidadãos do país – como propriedade privada e uma oportunidade para negócios sujos de toda a espécie. Vieram a Lisboa à procura de apoio para as suas denúncias. Encontraram o silêncio incómodo das autoridades políticas, numa reação que envergonha qualquer português que preze a Justiça e o Estado de Direito.
Nos últimos dias, notícia de um novo negócio: a Guiné Equatorial presta-se a injetar mais de 130 milhões de euros no Banif (onde o Estado já enterrou outros 700 milhões). E em paralelo, não por acaso, notícias risonhas sobre a possibilidade de a mesma Guiné Equatorial ser finalmente aceite na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Numa altura em que o regime de Teodoro Obiang se vê acossado e bens da família presidencial parqueados em França se veem sob a mira das autoridades, os cleptocratas procuram destino mais seguro para o produto dos seus roubos. E Lisboa chega-se à frente, com a hospitalidade de um banco liderado (por coincidência, seguramente) por um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros.
Portugal precisa de captar investimento estrangeiro, é certo, mas à falta dele parece que se contenta em acolher dinheiro para lavagem. Sejamos claros: os “investimentos” de “empresários” angolanos ou da Guiné Equatorial (e escrevo “empresários” entre aspas porque estes empreendedores são sempre membros, ou próximos, do poder político) não acrescentam um cêntimo à economia nacional, não criam um emprego, não financiam qualquer inovação, não acrescentam valor. São participações financeiras destinadas a colocar dinheiro sujo a salvo do povo a quem ele foi roubado. É tudo.
Ao acolher este “investimento”, Portugal desincentiva o investimento reprodutivo, de empresários limpos que procuram países organizados, com regras claras e justiça funcional, que pensam a longo prazo e querem segurança. Numa lavandaria não se constrói nada e, como o Presidente da República bem explicou, a má moeda expulsa a boa moeda. Um dia, Portugal, já manchado por uma história sombria de colonialismo, terá de explicar ao povo angolano (e, pelo andar da carruagem, ao povo da Guiné Equatorial) em nome de que cumplicidade e de que negócio apoiou os líderes que durante décadas roubaram, agrediram e assassinaram os seus próprios cidadãos. Em julho, os líderes da CPLP decidem sobre o pedido de adesão da Guiné Equatorial. O tom da conversa é de que o negócio está fechado e a adesão é inevitável. O secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros diz-se “profundamente convencido” de “um final feliz” (só não explica “feliz” para quem). Mas o próprio Governo reconhece que a Guiné Equatorial está longe de cumprir os requisitos mínimos para ser um parceiro aceitável, e embora os outros países da CPLP defendam esta adesão, não há um líder lusófono (tirando José Eduardo dos Santos, não por acaso) que dê a cara em defesa de Teodoro Obiang.
A TIAC faz parte de um movimento da sociedade civil que pediu ao primeiro-ministro timorense, Xanana Gusmão – anfitrião da próxima cimeira da CPLP – que vete este negócio. A prisão arbitrária de opositores, as execuções de adversários políticos e a corrupção desenfreada não são parceiros aceitáveis. E o argumento de que a CPLP será uma boa influência para a democratização do regime é de uma má-fé deplorável. A Guiné Equatorial não procura ajuda para se democratizar; procura ajuda para se branquear. É essa ajuda que a CPLP está a ponderar vender. Acreditar numa democratização por osmose, por feliz acidente, não é próprio de gente crescida.
Ainda vamos a tempo, mas a janela está a fechar-se. Na cimeira de julho jogam-se os princípios da lusofonia e os fins estratégicos do Estado português. Ou estamos a caminho de ser um país limpo, transparente, justo e exigente – connosco próprios e com os nossos parceiros – ou nos tornamos vendedores de indulgências e amigos de ocasião para todo o tipo de ditadores e donos de dinheiro sujo. Quem tanto se preocupa com a nossa reputação junto dos mercados e dos investidores internacionais devia preocupar-se com isto, acima de tudo.