Por João Paulo Batalha, membro da Direção da TIAC
Apesar de tudo, o tempo passa, o mundo pula e as coisas mudam. Há poucos anos, o debate (e mais ainda a denúncia) da corrupção era tema exclusivo de uns poucos teimosos militantes, sem qualquer poder ou posição na estrutura do Estado. Falavam sozinhos num país de tabus e silêncios. Hoje não. O ativismo da sociedade civil e o esgotamento evidente da opinião pública com a enxurrada de casos por esclarecer lá obrigam gente com responsabilidades a, no mínimo, dizer umas palavras de circunstância aqui e ali.
O Dia Internacional Contra a Corrupção, que se comemorou no início desta semana, é uma data bonita para profissões de fé. E dá gosto vê-las! António José Seguro foi claro na denúncia do «partido invisível» da corrupção, «que se espalha como uma mancha de óleo» e vai «capturando» o Estado. A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, também não deixou fugir o tema e assumiu que «a corrupção é um crime grave que prejudica o desenvolvimento económico e social» mas, coisa boa, é possível travá-la. No dia anterior, António Cluny, magistrado veterano do Ministério Público com 12 anos de experiência como procurador junto do Tribunal de Contas, falava também de forma certa e serena sobre a falta de mecanismos de prevenção, defendendo que a fiscalização dos contratos do Estado não se deve ficar pelos formalismos contabilísticos, mas sim vigiar a sustentabilidade e retorno económico dos investimentos, para que os políticos que assinam os negócios possam ser responsabilizados a sério pelos buracos em que nos metem.
A sensibilização pública para a corrupção é batalha tão ganha que até um político experimentado como Luís Nobre Guedes – ex-ministro investigado, e ilibado, no caso Portucale – sentiu o ímpeto cívico de denunciar um sistema concebido para «albergar os poderosos e garantir os interesses instalados», anunciando heroicamente a sua ida ao Congresso do CDS para «afrontar o poder constituído». Isto foi na segunda-feira, porque na quarta, quando foi noticiado que ia ao congresso, sim, mas nas listas dos apoiantes de Portas, já Nobre Guedes explicava que estava entretanto «reconciliado com toda a gente» – e nunca o termo «reconciliado», suspeito, terá sido tão bem empregue.
É bonito que o cidadão contribuinte, alarmado com o galope da corrupção, se sinta tão de repente em tão boa companhia. Livrai-me Deus dos meus amigos.
De Nobre Guedes já se contou a história. Algures entre segunda à noite e quarta de manhã alguém lhe terá ligado, ou oferecido um copo, lembrando-lhe que uma boa amizade é uma coisa terrível de desperdiçar. Paula Teixeira da Cruz, ao falar do flagelo da corrupção, apontou o dano das fraudes à Segurança Social, sem no entanto reservar uma palavra para a alta corrupção, aquela se senta à mesa do Orçamento do Estado e que todos os anos nos rouba milhares de milhões de euros para reserva de grupos com acesso privilegiado ao poder. Ignorou as fatias para lamentar as migalhas.
António José Seguro, por seu lado, tem o luxo da oposição, que é o de poder escolher os seus combates. Se está a sério, sr. secretário-geral, tem muito a fazer, mas comece por aqui: lute pela transparência do financiamento partidário, a começar em sua casa, e defenda um regime restritivo, higiénico e democrático de incompatibilidades e regulação de conflitos de interesses dos políticos – e, já agora, no dia em que a sociedade civil for ao Parlamento debater estes temas, envie lá um deputado, um que seja. Palavras são amáveis, mas tique-taque, caro António José Seguro.
Sobra a Justiça. Na sua entrevista ao Público, António Cluny discorreu argumentos justos sobre as falhas das instituições e a arquitetura do Estado. Impossível não concordar com ele – até porque algumas recomendações que faz, sobre o reforço do estatuto e missão do Tribunal de Contas, ecoam recomendações que a TIAC publicou há mais de um ano.
Estamos nas mãos de sábios. Governantes, magistrados e analistas ponderados e pedagógicos, cheios de bom senso e sentido. E se todos querem que tudo mude, porque é que nunca nada muda? Porque os sábios da República são os mesmos que se sentam há anos em pontos nevrálgicos do sistema sem adiantar serviço. Cluny, por exemplo, tem resultados a apresentar dos seus 12 anos como procurador junto do Tribunal de Contas? Que os mostre, para que possamos avaliar não só a sensatez das suas palavras, mas a eficácia dos seus atos.
Assim é na vida: quem não quer fazer assobia para o lado. Quem não quer fazer nem deixar fazer, barra o caminho. Chega-se à frente e proclama “Deixa comigo!”. Depois, as mãos nos bolsos e uns discursos de circunstância tratam do resto, tratam de nada tratar.
No debate público sobre a corrupção, os cidadãos, que não têm poder para fazer, conversam. Os poderes, que têm a obrigação de fazer, desconversam. Ocupam o espaço, passeiam sapiência e gravidade, falam de pedagogia e suspiram pela reforma das mentalidades. Desviam para canto. Onde falta empenho, trazem entretenimento. Onde falta força, trazem folclore. Deus me livre dos meus amigos. A existência desta gente sábia e serena, com tanto verbo de encher e tanta razão inconsequente, é a erosão da nossa esperança.