Por António Pedro Dores, presidente da Mesa da Assembleia-Geral da TIAC e membro da ACED, Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento
O que há em comum entre o desastre de Camarate e a sobrelotação do sistema prisional? Ambas as situações resultam de segredos de Estado e, por isso, a verdade torna-se turva e completamente dependente do “lado” em que cada um de nós se prefira colocar.
As teorias da conspiração têm aqui terreno fértil. Ambos os tipos de situações não apenas dificultam, como repudiam intencionalmente, o exercício da razão. Todos os seres humanos, sabe-se lá porque mecanismo automático, entendem logo que se trata de tomar partido. A moral, a justiça ficam em maus lençóis e frequentemente mal tratadas. São as injustiças encobertas pelos biombos policiais e judiciais que apenas vêm a público em casos excecionais.
Com a guerra colonial, as drogas africanas chegam a Portugal, pela mão e pelos hábitos dos soldados. O fundo de defesa militar do ultramar servia para desburocratizar o acesso dos chefes militares a recursos orçamentais, em tempo de guerra. Em Dezembro de 1980, em plena ressaca revolucionária, Portugal assiste atónito ao acidente de Camarate que vitimou dois membros do governo, o primeiro-ministro e o ministro da defesa, eventualmente assassinados com os seus acompanhantes para manter ativo – seis anos sobre o fim da guerra – esse fundo, que em 2013 Freitas do Amaral, à época Vice-primeiro-ministro, diz à RTP não estar seguro de ter sido fechado. Passados poucos anos, 1985, rebenta o escândalo Irão-Contras que revela a prática norte-americana de usar drogas ilícitas como moeda de troca no negócio de armas e na luta contra os inimigos dos EUA.
Nos primeiros anos da mesma década, com a abertura de fronteiras e com o desenvolvimento florescente do comércio de drogas ilícitas possibilitado pela políticas proibicionistas, Portugal tornou-se uma plataforma de chegada maciçamente organizada de tráficos ilícitos para a Europa, tanto devido à situação estratégica do país como à falta de vigilância na costa. Num certo dia, a liamba e o haxixe desaparecem como a baixa-mar em caso de tsunami, e a heroína a preço competitivo ataca os filhos das cinturas industriais, que ainda as havia nesse tempo. O Ministério Público e a magistratura judicial democráticos, recentemente instalados e desejosos de mostrar serviço, aceitaram militantemente tornarem-se justiceiros nessa guerra, cf. Maia e Costa (2003) “Prisões: a lei escrita e a lei na prática em Portugal” em António Pedro Dores (org), Prisões na Europa, Oeiras, Celta. Disse-me um dia um procurador adjunto, alto responsável sindical, que o MP seria, à época, o único (sic) instrumento de defesa da sociedade perante a invasão dos traficantes. Na altura não havia submarinos, como continua a não haver (cf. http://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/Studies/Drug-Trafficking-WestAfrica-Portuguese.pdf, pág. 16).
Bem entrados no século XXI, que balanço se pode fazer dos efeitos das políticas iniciadas nos anos 80? Por um lado, os inquéritos de Camarate continuam a ocupar os deputados mais persistentes. Por outro lado, as prisões portuguesas mantêm todos os anos taxas de mortalidade muito acima da média dos países europeus, e, dada a crescente sobrelotação, devem estar, no momento em que estas linhas são escritas, outra vez, a aproximar-se do recorde absoluto de 1997. A sobrelotação das cadeias portuguesas não se deve à necessidade de fazer parar criminosos violentos. Deve-se antes à vontade perversa, desenvolvida por políticas desumanas, de encarcerar os traficantes “dados à morte”, no quadro dos entendimentos tácitos entre polícias e contrabandistas. Em vez de um último recurso para defesa da sociedade, a penitenciária filantrópica revelou-se, na prática, um instrumento securitário capaz de alargar as teorias da conspiração ao quotidiano das populações, vitimando aqueles que menos possibilidades tenham de se defender, criando um humanil.
As prisões servem para esconder as misérias dos próprios miseráveis, na medida em que fazem entrar em ação processos sociais complexos mal conhecidos, como a síndrome de Estocolmo e a obediência irracional das experiências de Milgram, em favor dos poderes fácticos. As taxas de suicídio, as auto-mutilações, os abusos sexuais, a violência desesperada dos motins penitenciários, a moralidade global de tolerância para com os torturadores, a moralidade entre prisioneiros que penaliza especial e sistematicamente os abusadores sexuais no meio dos reclusos, as taxas aumentadas de doenças mentais, são alguns dos sinais mais conhecidos da perversidade induzida pela vida prisional. Mas o efeito mais profundo e de maior impacto é que nem a ciência consegue ultrapassar a barreira de repugnância que se ergue muito para além dos muros das prisões, para nos esclarecer sobre o que se passa. Prefere dizer-se que se trata de um mundo à parte, como se a mentira desbragada não nos contaminasse a todos e não fosse mesmo, sobretudo atualmente, o mais profundo dos males da política pública: a aceitação da falta de transparência no que toca aos direitos humanos de todo e cada cidadão. Fixada no slogan ideológico de troca de liberdades por segurança (na verdade, degradação das liberdades e da segurança).
Todos sabemos como o alegado combate às drogas transformou as prisões em grandes supermercados de drogas ilícitas, protegidos por forte segurança armada que impede toda a auditoria independente, onde nem o poder do Estado entra, dada a quebra evidente das linhas de comando: a célebre lei do silêncio que pesa sobre todos os assuntos prisionais é reforçada pelo segredo de Estado e ainda pela teoria da conspiração, forma retórica extremamente eficaz para confundir a verdade dos factos com os desejos das autoridades, tudo diluído em mentiras oficiais justificadas e mantidas falsas, sem penalizações ou retificações, em nome do bom nome das corporações de segurança. Quem se atreve a dizer que o rei vai nu? Quem se arrisca a ser tratado como criminoso, numa sociedade de indivíduos descartáveis?
A justiça, como as prisões, quando entendidas como instrumentos de luta contra as injustiças, não se podem deixar enfeudar a interesses conjunturais. O Estado de Direito tem de manter critérios de princípio, mesmo que seja só em abstrato, para manter a esperança do povo e das pessoas de boa vontade. Quando isso não acontece, como tem manifestamente sido o caso em Portugal, é a sociedade e os mais desfavorecidos quem sofre.
A sobrelotação das prisões é um sinal da continuidade do disfuncionamento das instituições judiciais – até num jogo de futebol, os comentadores procuram comparar o nível de violência observável e o número de punições disciplinares para avaliar o desempenho do árbitro. O endurecimento dos regimes carcerários são ótimos para assegurar os monopólios dos traficantes e para adoecerem os reclusos e guardas. Servem também para evitar o debate público e político sobre a justiça em Portugal – pois qualquer sugestão de endurecimento oriundo da imprensa popular que explora os preconceitos dos seus leitores dificilmente não encontrará resposta nalguma medida já em prática nas penitenciárias portuguesas.
Dito isto, é preciso identificar bem o perigo de a situação prisional em Portugal poder vir a piorar nos anos mais próximos, por exemplo, se se seguir o exemplo norte-americano, país com a maior população prisional do mundo – 2,5 milhões de pessoas entre muros e mais de 4 milhões sob tutela judicial.
O governo de José Sócrates, por sugestão do relatório de reforma prisional de Freitas do Amaral, propunha-se concentrar em meia-dúzia de mega prisões a meia centena atualmente existente. Para o efeito, o estado começou a vender algumas das prisões mais bem situadas e a preparar terrenos novos, não urbanizados, onde instalar as novas prisões, através de parcerias público-privadas, tudo sob a capa de segredo de Estado – pois as prisões são equipamentos de segurança e, portanto (?), o público fica impedido de saber como os negócios do Estado rentabilizariam financiamentos privados; quiçá a rendimentos ainda mais altos do que aqueles que foram conhecidos noutros casos e com o mesmo risco, isto é: zero.
Tomando o exemplo da experiência californiana, cf. Ruth Wilson Gilmore (2007) Golden Gulag, o perigo de vir a ocorrer em Portugal um encarceramento industrial de gente desvalida – temos muitos pobres dependentes do Estado – tipo gulag lusitano, não decorre sobretudo do aumento da criminalidade nem da privatização dos serviços do Estado. Devemos temer, isso sim, os negócios corruptos do Estado com as suas clientelas do costume, nacionais e internacionais, cheias de dinheiro parado por falta de economia viva, usando os terrenos abandonados em todo o interior de Portugal, com populações sequiosas de modernização e empregos, quando o desemprego estrutural não admite perspetivas de solução.
Devemos aproveitar o tempo para repudiar o plano de construção de mega-prisões metido na gaveta pela crise financeira. Em vez de continuarmos a servir este tipo de interesses dominantes na sociedade portuguesa, em nome da ressocialização e de respeito dos direitos humanos das vítimas e dos agressores, há que defender e persistir em reclamar a dispersão maior das prisões para junto dos locais de residência dos reclusos – sobretudo as grandes cidades – e a prática dos regimes abertos de cumprimento de penas de prisão já previstos na lei mas na prática ignorados pelos serviços prisionais, assegurando tacitamente vantagens para os monopólios interiores desejáveis para quem os possa explorar.
PS: Declaração de interesse: sou contra todo o tipo de crime. Por isso tenho denunciado o trabalho dos sistemas penitenciários. Constituem-se numa forma institucional de legitimar os crimes daqueles suficientemente defendidos do ponto de vista político, dentro e fora de muros, e apresentam como criminosos inatos, na verdade bodes expiatórios, as pessoas mais isoladas socialmente – dentro e fora das prisões. O problema maior do atual sistema penal não é a tortura, ocorra ela aqui e ali ou de forma sistémica. O problema maior é a mentira institucionalizada (sobre o que se passa nas prisões – e fora delas –, sobre a vida e o carácter das pessoas) como forma de distinção social e administrativa entre cidadãos teórica e doutrinariamente iguais, na prática judicialmente discriminados em reforço das respetivas debilidades socioeconómicas.
temos que trazer mais gente para este debate e avançando para propostas concretas , penso correcto dizer que politicas activas de integração dos reclusos em trabalho e formação deram(com provas fiaveis reais) e darão resultados autosustentaveis e ganhadores para os recluso e para a sociedade .Apareçam mais vozes a pressionar que se comece agora