Perdidos e (ainda não) achados

Por Luís Bernardo, historiador e membro da TIAC

Em ano de eleições autárquicas, a Inspeção-Geral das Administrações Locais (IGAL) já não existirá para auditar as autarquias. Esta Inspeção-Geral foi integrada, como anunciado, em 2011, por Miguel Relvas, na Inspeção-Geral de Finanças. E também não podemos aceder, facilmente, aos documentos produzidos pela IGAL (além dos recursos dos autarcas visados) entre 1995 e 2011. Num comunicado emitido a 18 de fevereiro, a Inspeção-Geral de Finanças diz que “o não acesso aos relatórios é uma falsa questão”, referindo, depois, a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos. Entretanto, sabemos que a Inspeção-Geral de Finanças, em comunicado emitido a 18 de fevereiro, elaborou um guia que apoiará o reporte de “factos, condutas e atos irregulares, passíveis de relevância tutelar administrativa, financeira e criminal”, para que se obvie a “incorreta tramitação dos processos que os condenarão ao arquivamento e consequente sobrecarga desnecessária do sistema jurisdicional”. A partir de agora, teremos direito a “resumos” das ações de auditoria da IGF às administrações locais. Isto quando sabemos que a IGF fez quatro participações, em dez meses, ao Ministério Público; no ano anterior à fusão com a IGF, a IGAL havia feito 171. Além disso, sabemos que esse guia determina algo de absolutamente extraordinário numa República onde a separação de poderes é constitucionalmente garantida. Em primeiro lugar, os inspetores da IGF só podem comunicar atos passíveis de perda de mandato ou dissolução do órgão ao Ministério Público caso se munam de “de meios de prova que demonstrem a culpa grave dos respetivos autores”. Mas a coisa melhora: quando os atos forem passíveis de sanção criminal ou tutelar, os inspetores só deverão tramitar o processo “com vista à sua remessa para o Ministério Público” “quando forem obtidas evidências que demonstrem a culpabilidade dos autores”. Portanto, o Ministério Público só agirá se os inspetores já souberem quem é culpado. Sendo assim, ficamos sem saber para que serve a IGF. Ou todo o aparelho judiciário.

De acordo com Orlando Nascimento, ex-inspetor-geral da IGAL, “a corrupção ganhou”. E ganhou porque, quando a opacidade vence, a corrupção ganha margem de manobra. A nota do Inspetor-Geral de Finanças, José Maria Leite Martins, revela uma noção pouco desenvolvida de transparência operacional e uma incapacidade perturbadora de compreender os preceitos da administração aberta. Demonstra, na verdade, ser apenas mais um burocrata incapaz de compreender que o Estado não é um bloco de granito e já não funciona acima de qualquer vigilância cidadã.

Não conseguir aceder facilmente aos documentos administrativos da IGAL está longe de ser uma falsa questão. Em primeiro lugar, a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos estabelece prazos restritos para o processamento do pedido feito pelos cidadãos, mas estes prazos, em regra, não são respeitados. Muitas das reclamações feitas à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, entidade gestora do acesso e direito à informação em Portugal, têm a ver com a violação dos prazos pelas entidades visadas por pedidos de acesso. No decurso do esclarecimento necessário sobre a IGAL e o destino dos seus relatórios, já fomos encaminhados para três serviços diferentes sem que tenhamos sido informados do estado do pedido e da sua apreciação. Um mês depois, nada disto aconteceu. Continuamos à espera.

Embora a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos seja um bom passo, não passou disso. Helen Darbishire, da ONG Access Info Europe, propõe um conceito que talvez confundisse o Inspetor-Geral de Finanças e o Ministro de Estado e das Finanças: transparência pró-activa. Isto é, a publicação por defeito de toda a informação produzida pela administração pública, desde que devidamente expurgada. Se a IGF soubesse o que é isto de transparência pró-activa, e se o Governo da República fizesse a menor ideia do que significa fazer da transparência um pilar de políticas públicas, os relatórios da IGAL estariam disponíveis e a própria IGAL, com toda a probabilidade, ainda existiria. A TIAC (Transparência e Integridade, Associação Cívica) já desenvolveu uma série de propostas para um governo aberto e um acesso à informação mais ágil. Mas continuamos a exigir toda a informação a que temos direito. E, como cidadãos da República, temos direito a saber. Apesar dos burocratas e da sua arrogância acerca de “falsas questões”.

Este artigo foi publicado originalmente na edição de 14 de março de 2013 da revista Visão

3 comentários a Perdidos e (ainda não) achados

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  3. Sempre que existe uma entidade que se torna incómoda para quem governa, a qualquer nível e,frequentemente se governa, a alternativa é o mesmo destino que deram à IGAL…Ou então,colocar à frente da mesma quem não passa de um “pau “mandado”Tive que recorrer a este organismo e o balanço foi amplamente positivo.

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