Por Luís Bernardo, historiador e membro da TIAC
Em primeiro lugar, vejo-me obrigado a fazer uma longa declaração de interesses. Reconheço-me na missão da TIAC, sou seu membro fundador e considero a nossa (sua, leitora/leitor, e minha) associação um marco histórico e uma organização pioneira no contexto cívico português. No entanto, e porque nasci numa democracia, porque as democracias cheias de defeitos continuam a ser melhores que as ditaduras “benfazejas”, tenho a minha opinião acerca do empréstimo sob condicionalidade estrita concedido à República pela Comissão Europeia, pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Central Europeu, com o apoio do Fundo Europeu de Estabilização Financeira e do Mecanismo Europeu de Estabilidade. Em muitas palavras, acabei de referir o memorando da troika. Quando não conseguimos falar disto em poucas palavras, é mau sinal; é sinal de opacidade. Mas já lá iremos. Não concordo com ele porque não resultou, não resulta e não resultará em contexto algum: promove transformações económicas e sociais contrárias àquilo que considero justo, desejável e necessário. Como já escrevi por aqui, fui um dos 29 subscritores do manifesto que apelou às manifestações de 15 de Setembro. Também sou um dos subscritores do apelo às manifestações de 2 de Março. Faço-o enquanto cidadão, ativista e investigador. Repudio qualquer separação entre as três etiquetas.
As declarações recentes do ministro de Estado e das Finanças Vítor Gaspar são especialmente gravosas para aqueles que elegem a transparência e o direito de acesso à informação como combates fundamentais. Recordemo-lo: o mesmo ministro que se recusou liminarmente a pedir um alargamento dos prazos para a correção ao défice fala, agora, em pedir um alargamento. O mesmo ministro que acreditava, porque os seus modelos assim o determinavam, numa contração de 1%, fala agora numa contração de 2%. Cem por cento de aumento. E o mesmo ministro que não parece ligar demasiado ao desemprego reconhece a necessidade de rever os números do desemprego, Não se trata de concordar com as ideias do ministro, e muito menos de ajuizar acerca da sua competência – porque os números falam por si, e não somos nós os zelotas numéricos. Trata-se, isso sim, de combater dois preconceitos que dominam as políticas públicas deste governo. São preconceitos que entroncam numa postura fundamental: a opacidade e o governo fechado.
O primeiro preconceito é o de todos os tecnocratas. As pessoas “comuns” não percebem os assuntos em causa, pelo que disponibilizar toda a documentação e explicar, em português, aquilo que pretendemos é desnecessário e fútil”. De acordo com este preconceito, os putativos modelos econométricos que dirigem a governação económica e financeira de Portugal (e da União Europeia) não são passíveis de escrutínio público porque o contributo público seria totalmente negligenciável. Ainda que isto fosse verdade (não é), a Constituição da República protege o direito de acesso à informação administrativa referente a todos os atos executivos. As declarações do ministro de Estado, que acabou por deitar no lixo boa parte das suas opções governativas do último ano e meio mas não deixou de falar em cortes contingentes de 800 milhões de euros para intensificar o efeito dessas opções governativas, só podem parecer democraticamente aceitáveis num país onde a cultura do secretismo está cristalizada e tem legitimidade automática. Porque o ministro de Estado e das Finanças fala em modelos que nunca disponibilizou para escrutínio público, computou variáveis com valores desconhecidos e prefere alguns indicadores sobre outros. São opções. O que não é uma opção – e o ministro sabe-o bem – é o seu dever de informação ao eleitorado e a todos os residentes em Portugal. Porque, ao contrário do que se pensa em determinados círculos, as pessoas “comuns” são capazes de tomar decisões com base em informação credível e compreensível. O primeiro passo é disponibilizar a informação.
O segundo preconceito é mais grave. “O escrutínio público desacelerará a tomada de decisões”, diz-se. É um preconceito típico em círculos fechados, onde a informação não circula e os decisores veem as suas opiniões reforçadas por idiotas úteis – os mesmos idiotas úteis que infestam gabinetes ministeriais e constituem uma metástase do nosso sistema de partidos. De acordo com este preconceito, a transparência é um chavão usado para ganhar votos e a tomada de decisões em contexto democrático deve submeter-se ao mercado e à sua velocidade. Dito assim, não será, com precisão, um preconceito; é uma opção ideológica. É uma opção errada, do meu ponto de vista. A democracia não é uma opção.
As declarações do ministro de Estado e das Finanças são muito graves porque mostram aquilo que pode acontecer quando as decisões são tomadas em corredores bafientos e escuros. Vítor Gaspar acaba de recuar numa experiência laboratorial com custos humanos incalculáveis – nunca é demais lembrar a sua teimosia e a sua inflexibilidade (além da sua opacidade) a respeito do programa de “consolidação orçamental” – reforçada pela falta da escrutínio público e consulta às ditas pessoas “comuns”, teoricamente incapazes de manifestar opiniões acerca de modelos econométricos cuja existência não é totalmente verosímil. E a erosão da nossa democracia, conquistada em 1974, dá-se em gabinetes onde os documentos administrativos são tidos como feudo de especialistas monocórdicos com carreira feita em Frankfurt. Como Vítor Gaspar. O mesmo ministro de Estado e das Finanças que reconhece um erro de 100% no indicador que define a vida deste país. A pergunta que devemos fazer, portanto, é a seguinte: por que razão não temos acesso a esses modelos, aos documentos preparatórios e toda a informação utilizada para definir as políticas públicas portuguesas? Será porque, como pessoas “comuns”, não sabemos como usar essa informação? Parece cada vez mais claro que, entre as pessoas “comuns” e o ministro de Estado, a única diferença é a informação de que ambos dispõem.
Embora estejamos a caminho da sétima revisão do Memorando e já tenhamos sido brindados com um relatório do FMI (nenhum dos documentos principais ou secundários com tradução oficial para português), continuamos a não ter, nas nossas mãos, todos os documentos que norteiam as decisões económicas e financeiras cujo efeito é um desemprego galopante e uma destruição com nada de criativo e muito de previsível. É o caso das parcerias público-privadas, que a TIAC, em parceria com a Universidade do Porto, começou a desmontar, ou das privatizações, efetuadas a coberto da noite – presume-se, para esconder o rubor de vergonha na cara dos seus executores, tal a falta de transparência e dignidade do processo (já que a sua necessidade continua por esclarecer). Acresce a isto um conjunto de ações recentes, como a conferência sobre a reforma do Estado aberta à sociedade civil designada pelo governo ou a retirada dos relatórios de auditoria da Inspeção-Geral das Administrações Locais da Internet (em ano de eleições autárquicas).
E, infelizmente, o nosso debate público ainda não se debruçou sobre a transparência das instituições internacionais que, em violação da nossa Constituição, impõem um programa de condicionalidade estrita associada a um empréstimo. O Fundo Monetário Internacional, por exemplo, tem práticas de disponibilização da informação e auditoria interna que não cumprem requisitos mínimos: a estrutura de governo do Fundo é uma reminiscência da Guerra Fria e seria absurdo, para um habitante de Lisboa, solicitar acesso a informação arquivada em Washington. Quanto ao Banco Central Europeu, é a mais opaca e impenetrável instituição europeia. Afinal, trata-se de um banco central, instituição tradicionalmente conservadora e avessa ao escrutínio democrático (observe-se o Banco de Portugal e os seus standards perfeitamente medievais). E a Comissão Europeia, que vê as suas contas questionadas há quase duas dezenas de anos pelo Tribunal Europeu de Contas, também não é conhecida pela sua transparência exemplar. Vítor Gaspar emerge destas burocracias e não podemos esperar uma atitude diferente. Mas podemos exigir mais transparência e mais informação. É um dos nossos deveres fundamentais. Para que as declarações do ministro, anteriormente tão certo das suas ideias e do seu programa, não se repitam.
Louis Brandeis, juiz do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, afirmou certo dia que a luz do sol é o melhor desinfetante. Não teria, provavelmente, a melhor opinião do atual Ministério das Finanças. Um Ministério incapaz de compreender o primado da administração aberta e do contrato social celebrado entre Estados e cidadãos no século XXI, para que possamos viver na certeza de uma democracia e de uma sociedade aberta. Confesso não saber se o sr. ministro de Estado e das Finanças sabe quem foi Louis Brandeis. Talvez saiba mais de modelos econométricos. Mas nós temos uma curiosidade insaciável sobre econometria, especialmente a econometria do sr. ministro e os modelos que, ultimamente, transformaram a política e a sociedade portuguesa em folhas de cálculo. Queremos saber e exigimos que esses modelos sejam disponibilizados ao público, assim como todos os documentos, principais, secundários, preliminares, prospetivos e retrospetivos, que motivaram a teimosia anterior do ministro e a sua recém-descoberta flexibilidade. Queremos saber. E queremos saber tudo.