Nova época de revoluções, em honra do deus-dinheiro

Por António Pedro Dores, presidente da Mesa da Assembleia Geral da TIAC

A democratização dos países ibéricos e a Grécia, nos anos 70, estendeu-se para a América Latina. A integração europeia pareceu ser o paraíso das democracias nacionais, enquanto a América Latina lutava contra a dívida, nos anos 80. A implosão do regime soviético acelerou a integração europeia e expandiu o poder norte-americano e do capitalismo no mundo. Disso beneficiou a América Latina, onde o investimento político, policial e militar norte-americano baixou. Regimes mais representativos dos povos emergiram em muitos desses países, enquanto na Europa, como nos EUA, a normalização democrática afastou cada vez mais as pessoas da política, abandonada aos profissionais, por sua vez, cada vez mais bem pagos – como os CEO das empresas multinacionais – através de campanhas eleitorais, corrupção, especulação, jogos mediáticos, financeiros e de influência, em particular no jogo de cartas marcadas das privatizações dos lucros/nacionalizações dos custos.

A revolução neoliberal, o que em Portugal se chama o PREC ao contrário ou política revanchista, é afinal uma prática que nunca deixou de ser desenvolvida e aprimorada nomeadamente em termos globais através das políticas de “ajuda ao desenvolvimento”, que têm infernizado a vida a milhões de pessoas nos diferentes cantos do mundo, como é denunciado em particular pela confissão de um assassino económico, John Perkins. Em muitos casos a destruição torna-se permanente, como no Haiti e muitos outros países de ex-escravos.

Um dos debates decididos logo a seguir ao 25 de Novembro de 1975, golpe de Estado que acabou com as discussões ideológicas em Portugal, foi a opção entre integrar os países não-alinhados (a que Soares chamou miserabilismo) e integrar a CEE, a que o povo português aderiu empenhadamente, ainda que na verdade jamais tenha sido possível discutir o assunto e sem consulta popular sobre o assunto (o referendo sobre a regionalização, matéria anteriormente consensual, mostrou como há casos de falsos consensos, incapazes de resistirem a uma discussão pública). Fez-se política da tradicional admiração nacional pelos povos nórdicos, lá onde os trabalhadores e o trabalho são tão ou mais respeitados que os doutores e outros descendentes de oligarcas. Embora por cá a subserviência e o horror à racionalidade produtiva continuassem a vingar, mesmo como perspetiva normativa e sem obstáculos, beneficiando os intermediários (políticos) que nos traziam as novas patacas, em breve tornadas euros. E mais tarde transformadas em dívida escondida para muitos e bons anos.

É certo que a classe política – efetivamente estas últimas décadas geraram uma classe política multipartidária no mesmo sentido que o regime do Estado Novo criara uma classe política monopartidária – explorou até quando pode as mais-valias da situação. Por isso se recusam a fazer o óbvio: uma auditoria que o Passos Coelho chegou a propor publicamente – por ser o ignorante que é – e logo foi corrigido pela srª Merkel.

A virtude da procura da verdade está atualmente acantonada nas margens do sistema, nas manifestações multitudinárias, já que o poder se concebe a si próprio como alheio ao Direito e além dele, desde logo a nível constitucional. O esvaziamento do Direito torna as instituições judiciais capazes de punir como motim, insubordinação ou rebelião qualquer invocação de Direito, por exemplo no âmbito dos Direitos do Homem e da liberdade de expressão.

A corrupção generalizada dos dirigentes, tantas vezes apontada e outras tantas ignorada, como nos países sujeitos ao neocolonialismo, não é nem característica genética nem condição de admissão a funções: é apenas um estado de coisas. Do mesmo modo que para comprar peixe a maioria do dinheiro pago pelo consumidor fica no intermediário, também num sistema preparado para assegurar os rendimentos da banca acontece um fenómeno afim. Se a maioria da classe dominante e dos seus seguidores são gente impoluta, não impede que a corrupção seja impune e o suporte da situação, do mesmo modo que o facto dos polícias serem bons profissionais, se o forem, não impede a droga de circular. A corrupção deve ser combatida – e está com certeza a ser combatida – mas as forças que a geram são imensamente banais, ao contrário das forças que contra ela se organizam.

O capitalismo, na sua face selvagem, como é aquela que estamos hoje a experienciar, destrói tudo à sua volta, com tanta profundidade quanto uma raspagem pode assegurar. Ao contrário do que as teorias evolucionistas simples fazem crer, os ciclos de “destruição – exploração industrial – destruição” são recorrentes. O que explica, como na vingança do chinês, a aplicação de estratégias de neocolonização (destruição dita competitiva, na verdade pré-exploradora) num país ainda recentemente centro de um império colonial. A exploração que se seguirá será dos recursos naturais que possam existir, incluindo força de trabalho subordinada e agradecida, desqualificada ou superqualificada, com desprezo pelos direitos humanos, cf. Judith Blau e Alberto Moncada, Human Rights – a primer, Boulder&London, Paradigm Publishers, 2009:15. As reclamações da Amnistia Internacional começam a ser tratadas como perturbadoras da ordem, como em qualquer país sob ditadura, e vozes se levantam contra os excessos de liberdades de greve, de manifestação e de informação na internet.

Ao contrário da situação internacional em 1974, as perspetivas de progresso para o povo português estão prejudicadas pelos benefícios a que julgou ter direito pelo facto de alinhar politicamente com a União Europeia, mas afinal estão “acima das nossas possibilidades”. Dependemos de terceiros em termos alimentares, energéticos, cognitivos, e do ânimo explorador da classe dirigente, auto-dispensada de qualquer respeito pela Lei, como é evidente, faz pelo menos uma década de promessas eleitorais sucessiva e sistematicamente quebradas no próprio dia das eleições. Mais recentemente o memorando da troika assinado nas vésperas das eleições colocou a democracia sob tutela externa, cujas consequências diretas são o desprezo pelas necessidades vitais das populações e a estratégia expressa na ideia de refundação do Estado, verdadeira justificação para o estabelecimento de um estado de exceção, na verdade já anteriormente levantado e condenado pelo Tribunal Constitucional, ainda que de forma suave, sustentado numa longa e programada menorização da simples autonomia do sistema judicial, porque a independência sempre esteve fora de questão. Tudo isto articulado com uma fase capitalista de destruição que se pretende fazer querer ser natural mas, de facto, é apenas sistémica: se se parar o sistema deixa de haver destruição. Mas como a história não admite congelação – esse é o grande problema das políticas de resistência usadas pelas esquerdas nas últimas décadas – em caso de não substituição do sistema, este continua a esmagar, cilindrando tudo o que lhe apareça debaixo, sobretudo as pessoas mais frágeis dadas em sacrifício para alimentar o deus dinheiro.

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