Por Luís de Sousa, presidente da Transparência e Integridade, Associação Cívica
Nos últimos dias, o país consumiu-se com o mistério dos documentos desaparecidos do Ministério da Defesa no famoso caso dos submarinos. Paulo Portas, ministro da Defesa à data do negócio, reagiu à controvérsia com o jeito para a metáfora que lhe é reconhecido: as notícias sobre o processo, disse, “emergem e submergem” com regularidade, sem que até agora alguém tenha sido acusado ou condenado, neste ou em processos paralelos.
Portas tem razão – mas uma razão que provavelmente diz mais da Justiça portuguesa do que da lisura do negócio. No final do ano passado, um tribunal alemão condenou dois administradores da Ferrostaal por terem subornado agentes portugueses e gregos para a venda dos submarinos. Na Grécia, inclusivamente, um antigo ministro da Defesa foi detido. Por cá, nada. Se o imobilismo que tem caracterizado este caso perdurar, arriscamo-nos a viver neste estranho paradoxo: houve corruptores, mas não há corrompidos.
Mas vamos ao mistério dos documentos desaparecidos. À revelação do acórdão do MP apontando o desaparecimento da documentação sucederam-se declarações políticas dos vários quadrantes. Gente sem dúvida maldosa não deixou de sugerir ao MP que procurasse as provas em casa de Paulo Portas, que terá digitalizado perto de 62 mil documentos (incluindo, alegadamente, informação classificada sobre este e outros assuntos), sem que os contornos desse caso tenham alguma vez ficado cabalmente esclarecidos.
O problema não é, no entanto, onde estão os documentos. Num tom desajustadamente jocoso, o atual ministro da Defesa, Aguiar Branco, colocou a questão certa: “Quais documentos?”. A pergunta não tem, no entanto, a inocência que o ministro sugere, e revela antes a forma habilidosa como muitos dos negócios na área da Defesa são conduzidos, para não deixar rasto escrutinável – nem pela imprensa, nem pela sociedade civil, nem mesmo pelo Parlamento ou pela Justiça.
É, sim, possível que os documentos necessários para entender como evoluiu a posição do Estado no negócio dos submarinos não tenham realmente desaparecido do Ministério da Defesa. Porque é perfeitamente possível que nunca lá tenham estado! Nesta, como em tantas negociações, o Governo foi assessorado por um escritório de advogados que assumiu os contactos com os concorrentes.
Aqui começa a opacidade. Protegidos pelo sigilo profissional, documentos cruciais para identificar (e provar) potenciais conflitos de interesse, favorecimentos ou pagamentos ilegais ficam à partida a salvo de qualquer mecanismo de controlo. Frequentemente, o Ministério Público constitui arguidos os advogados envolvidos nestes processos (como fez neste caso), para poder proceder a buscas nos seus escritórios. É um expediente problemático, no mínimo, e que só revela a falta de meios mais eficazes que deviam estar ao dispor da Justiça, e não estão.
É evidente que ninguém pede ao Ministério da Defesa que publique planos detalhados do material militar que compra. É evidente que há matéria que é, e tem de ser, reservada. Mas isso não quer dizer que se permita a ministros, militares e fornecedores fazerem os negócios que entenderem, longe da vista de todos e sem quaisquer mecanismos de controlo. Sobretudo numa área tão propensa à corrupção, que envolve tantos milhões e onde a promiscuidade entre consultores públicos e empresas privadas é tão evidente. A defesa nacional não pode ser um ataque orçamental.
A outra questão que este caso coloca é do domínio da Justiça. A compra dos submarinos está em investigação desde 2006, sem resultados visíveis. Na Alemanha já se fez a investigação, dois responsáveis foram acusados, deram-se como culpados no tribunal e foram condenados. Em Portugal, a equipa de investigação do Ministério Público que obteve resultados na investigação do processo das contrapartidas (9 arguidos que começam a ser julgados em setembro) foi afastada do processo principal por decisão do Procurador-Geral da República (PGR). Era útil que Pinto Monteiro explicasse essa decisão e dissesse ao país se está satisfeito com os seus resultados.
Não estamos condenados a isto. A integridade nos negócios do Estado não é opcional. A primeira coisa que precisa de mudar é o recurso constante a consultores externos e grandes escritórios de advogados na negociação pública. Se é ao Estado que cabe defender o interesse nacional, o Estado tem de desenvolver competências próprias para negociar em seu nome e gerir os seus próprios negócios. Não há outra forma de afastar conflitos de interesses, promiscuidades e negócios escuros. Não é complicado: as medidas essenciais foram apresentadas ao Governo, ao Parlamento e à Troika há mais de um ano pela TIAC; e reiteradas no nosso estudo Sistema Nacional de Integridade, apresentado em maio passado. Só nunca tiveram foi o acolhimento que deviam.
Outra fragilidade apontada no Sistema Nacional de Integridade revela-se aqui também, de forma clara. O método de indigitação do PGR é uma das principais fragilidades do Ministério Público. A nomeação pelo Presidente, sob proposta do Governo, pode levantar suspeitas desnecessárias sobre a independência do PGR face ao poder político – sobretudo quando ocorrem situações pouco ortodoxas, como substituir uma equipa de investigação a meio do trabalho. Também sobre esta matéria a TIAC já se pronunciou: a nomeação do PGR deveria seguir o mesmo procedimento em vigor para o provedor de Justiça, os juízes do Tribunal Constitucional e os vogais do Conselho Superior da Magistratura, isto é, escolhido “por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções” (Artigo 163.º h) CRP).
O que se tira de tudo isto, em suma? Tiram-se dois problemas estruturantes do nosso Sistema Nacional de Integridade: a incapacidade da justiça lidar com casos em que estejam envolvidas figuras políticas; e a falta de proteção do interesse público nos grandes negócios do Estado.
São problemas (estes e outros) que abordaremos na primeira edição do Curso Livre – Sistema Nacional de Integridade, que vamos organizar com o Instituto de Ciências Sociais e a Inteli de 3 a 8 de setembro. Porque nada disto se resolverá sem termos, antes de mais, cidadãos atentos e informados, que possam (que devem!) exigir mais das instituições que os representam.