Por António Pedro Dores, presidente da Assembleia Geral da TIAC
Um preso queixa-se de ter apanhado 51 anos de pena por burlas, tomadas como crimes separados, e teme que o facto de não estar ainda feito o cúmulo jurídico, quase uma década após a sua entrada na cadeia, queira dizer que se preparam para o fazer cumprir as penas sucessivamente. Dir-se-ia que estamos num país moralista. Mas estamos em Portugal, onde vigaristas são escolhidos para cumprirem funções das mais importantes para o Estado, sofrendo sem vergonha a pena única de serem motivo de anedotário, protegidos sabemos todos muito bem porquê e por quem.
Muitos comentadores e políticos entendem dever separar a avaliação política da avaliação do carácter das pessoas. Não queremos em Portugal o populismo dos tabloides anglo-saxónicos a comandar a opinião pública. Outros levam o rigor ao pormenor de manifestar indignação pela confusão entre o caso da licenciatura de Sócrates (que terá frequentado algumas cadeiras do curso de que obteve certificado) e da licenciatura de Relvas (que não terá frequentado praticamente nenhuma). Mas o resultado final é que a utilização do Estado para fins privados, de que os certificados de ensino são apenas os exemplos mais fáceis de documentar, é assunto tabu na política portuguesa.
Na verdade muitos destes comentadores continuam a discutir alta economia política – que é o topo da carreira – sem se aterem ou terem sequer suspeitado de algumas verdades como aquelas recentemente apresentadas por Paulo Morais sobre os mecanismos, cumplicidades, anuências, omissões, impunidades, de que resulta a crise nacional: estamos todos a pagar não apenas o BPN dos manda-chuva como as fraudes legalizadas na classificação de terrenos, da produção de leis em favor dos bancos e das empresas de advogados, o pulular de fundações e de outras benesses para os amigos, a obstrução politicamente organizada à justiça por partidos e empresas de advogados disso beneficiários. Não somos os portugueses que vivemos acima das nossas possibilidades, mas antes os vigaristas que exploram o Estado português é que vivem conforme as suas possibilidades. O que nos causa problemas, sobretudo se continuarmos a pensar ou fazer como se o Estado fosse propriedade privada desses mesmos escroques.
Um amigo dizia, ao ver a Judite de Sousa espantada a perguntar ao Paulo Morais se estava seguro da gravidade das acusações que fazia, que esperaria algum tipo de consequências. Ou a frontalidade da denúncia causaria algum desgosto ao denunciante ou aos denunciados. Espantado ficou o telespectador quando nos dias seguintes apenas pode dar-se conta da presença de Paulo Morais em vários meios de comunicação, sem outras consequências.
Num país que admite a vigarice como prática social legítima para quem vive da política, qualquer verdade fica baça espelhada no lodaçal. Como poderia o grosso dos comentadores fazer, sem riscos, as suas inócuas e repetitivas análises se introduzissem a verdade como variável explicativa? Como se manteria o governo sem a ilusória esperança de que a troika venha cá para – em segredo – combater a corrupção endémica? É mais doce viver-se de ilusões do que assumir responsabilidades. É mais fácil colaborar com os escroques do que expropriar os resultados das chicoespertices políticas.