Portugal, a Europa e a crise

Por Luís de Sousa, presidente da TIAC

Portugal atravessa uma das piores crises da sua longa história como Estado soberano. A democracia não parece, para já, estar em risco, mas a sua legitimidade está a ser seriamente questionada. Afinal, quanto tempo consegue uma democracia sobreviver à contínua degradação da qualidade de vida dos seus cidadãos e à incapacidade dos governos atacarem os problemas?

Num contexto de austeridade, não surpreende saber que 70 por cento dos portugueses sente que a sua qualidade de vida desceu de forma dramática nos últimos anos. Mais preocupante é que nove em cada dez inquiridos sente que o seu governo democraticamente eleito não é suficientemente independente das instituições financeiras internacionais e dos grandes Estados-membros da União Europeia para tomar as suas próprias decisões.

Esta ideia de que a democracia capitulou perante forças políticas e económicas externas não está a ser compensada por um maior apoio à Europa, como aconteceu nos anos iniciais da nossa consolidação democrática. Hoje, metade dos inquiridos considera que a integração na UE teve um impacto negativo na capacidade das instituições nacionais defenderem os interesses dos cidadãos. Portugal passou de europeísta a eurocético.

A nível europeu, esta crise desmistificou duas crenças quase universais entre os líderes da UE: a crença de que a Europa podia construir-se em torno de um mercado europeu e que a democracia viria logo a seguir; e a crença de que consolidação democrática e boa governação são a mesma coisa.

Criar um mercado comum suportado por uma moeda única foi mais fácil do que instalar um sistema democrático europeu com verdadeira capacidade redistributiva. Durante quase 50 anos, a UE dedicou-se à integração dos mercados, acreditando que a livre circulação de pessoas, bens, capital e serviços geraria crescimento económico e aumentaria a competitividade europeia. De um modo geral, isso tem acontecido. No entanto, os Estados-membros subestimaram as implicações sociais e políticas da integração económica nos países mais frágeis. O desenvolvimento não se atinge do dia para a noite, pela mera injeção de enormes quantidades de dinheiro. As instituições importam. Mecanismos de controlo e fiscalização importam, boas leis e regulação eficaz importam. Infelizmente, nada disto foi suficientemente acautelado.

A “nossa” crise

Embora a crise tenha sido despoletada pelas dinâmicas políticas e económicas internacionais, as principais causas do seu impacto negativo estão dentro de portas: na má gestão de recursos públicos, na corrupção e no clientelismo, na estagnação económica, nas desigualdades crescentes, nos persistentes défices da balança comercial e na dívida soberana insustentável.

Estes sinais de aviso eram bem conhecidos dos analistas, mas foram sistematicamente ignorados não só pelos decisores nacionais mas pelos líderes europeus. Desde que Portugal entrou na UE houve uma atitude leviana dos vários governos em relação à despesa pública e aos esquemas de desorçamentação, com Parcerias Público-Privadas ruinosas, derrapagens constantes nas obras públicas, esquemas remuneratórios inflacionados para os decisores de topo, um número cada vez maior de funcionários públicos redundantes, a má gestão persistente dos fundos europeus e uma regulação bancária deficiente, que permitiu bolhas de investimento e crédito de risco.

A irresponsabilidade financeira dos governos portugueses teve apenas paralelo na complacência das autoridades europeias e dos principais parceiros da UE. Desde a entrada em força da união monetária, a atitude da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu em relação aos défices de Portugal e da Grécia foi de negligência benévola. Foi com essa negligência benévola que chegámos até aqui.

Ao problema da dívida soberana, soma-se um problema com a dívida do setor bancário. A liberalização dos mercados financeiros, a promiscuidade entre as elites políticas e económicas e a supervisão negligente permitiram que dois bancos privados de má memória, o BPN e o BPP, acumulassem prejuízos ao longo de mais de uma década, graças a maus investimentos, desvios de fundos, fraude e lavagem de capitais. Alegando riscos de contaminação a todo o setor bancário com implicações graves para a economia, o governo decidiu resgatar os bancos com dinheiro dos contribuintes. Até ver, o resgate soma 2,8 mil milhões de euros e o problema continua longe de estar resolvido. Ninguém ainda conhece a real dimensão do buraco nem quanto dinheiro mais será necessário para cobrir as perdas dos dois bancos.

E enquanto os portugueses recebiam a fatura destes desmandos privados, permitidos pela fraca regulação e supervisão do sistema, o que acontecia aos reguladores? Vítor Constâncio, presidente do Banco de Portugal (e ex-líder do PS) era recompensado com um cargo de vice-presidente do Banco Central Europeu.

As falhas

A mistura de austeridade e corrupção é altamente corrosiva para o tecido social e económico. Esta crise prova que não podemos aprofundar a integração económica sem fortalecer as instituições representativas e os mecanismos de controlo. Instituições eficazes são fundamentais para a competitividade de um país. Elas melhoram a prestação de serviços públicos; respondem às falhas do mercado, aumentando a eficiência e reduzindo custos de transação; promovem a transparência e o empreendedorismo; facilitam o funcionamento do mercado laboral; criam condições para o investimento e o comércio, ao reduzir os riscos de instabilidade social e política e promovem a inovação, o conhecimento e a produtividade, fatores chave para o dinamismo económico.

Ora, são várias as falhas que identificámos no nosso Sistema Nacional de Integridade. A principal é a falta de vontade política para adotar uma estratégia anti-corrupção coerente. Sem essa estratégia, falha a coordenação dos vários organismos responsáveis por este combate e fracassa a punição dos criminosos – sobretudo nos casos mais mediáticos que envolvem políticos, altos responsáveis públicos, presidentes de grandes clubes de futebol, grandes empresários ou banqueiros. Portugal é o país onde os autarcas condenados podem continuar a exercer, desafiando as decisões dos tribunais e ridicularizando a Justiça. Portugal é o país onde os responsáveis que não atuaram a tempo para impedir a corrupção e a fraude no sistema bancário são recompensados com posições douradas no BCE.

Não só a punição dos corruptos falha, as oportunidades para a corrupção abundam. Reina a irresponsabilidade na gestão das finanças públicas, presas pelo clientelismo endémico e por fraquíssimos sistemas de transparência orçamental e auditoria. O dinheiro público é gasto a satisfazer clientelas partidárias sem qualquer critério de sustentabilidade ou equidade intergeracional. As auditorias focam-se mais em formalismos do que na substância, o que as torna complacentes com a má gestão. Portugal é um país de buracos negros nas contas públicas e derrapagens orçamentais em todos os níveis de governo.

Por fim, persiste uma cultura permissiva à corrupção e à cunha. Portugal é o país onde a gestão irresponsável e fraudulenta dos recursos públicos não é punida nem pela justiça nem pelos eleitores. Num estudo de 2006, 64% dos inquiridos acredita que a corrupção é admissível, desde que beneficie a população – o que significa que os eleitores toleram o político que “rouba, mas faz”. Isto não é uma originalidade portuguesa, ou do sul da Europa. A corrupção não está no nosso ADN. Simplesmente, as pessoas adaptam-se aos contextos. Esta é a resposta pragmática às más leis e às más instituições. Como os emigrantes portugueses bem têm demonstrado, somos capazes de grandes feitos, individuais ou coletivos, quanto trabalhamos em contextos organizacionais eficientes.

Os remédios

O problema nacional exige intervenções profundas, detalhadas no Sistema Nacional de Integridade. O primeiro passo é criar uma estratégia nacional de combate à corrupção, através de um grande debate público, que estabeleça objetivos claros, prazos bem definidos e meios suficientes de atuação e coordenação, acompanhados de mecanismos eficazes de avaliação de resultados.

Depois, precisamos de um sistema de gestão de conflitos de interesses que garanta que os agentes do Estado estão ao serviço do bem público e não de interesses privados. Do mesmo modo, é preciso regular eficazmente o financiamento político – convém não esquecer que muitos dos escândalos de corrupção nos últimos anos têm estado ligados, de uma forma ou de outra, ao financiamento partidário.

Precisamos também de uma nova lei de proteção dos denunciantes. As regras existentes são vagas e estão por regulamentar. Hoje em dia, não é seguro denunciar a corrupção e a fraude. Não há sanções aplicáveis aos infratores, o que significa que os denunciantes e as suas famílias estão expostos a pressões e intimidação. Os próprios mecanismos de denúncia estão subdesenvolvidos.

Por fim, é urgente fortalecer a transparência orçamental e da gestão pública. O Memorando de Entendimento fixa objetivos importantes a este nível, mas cá estaremos para ver se estas diretivas valem apenas durante o plano de resgate ou se vêm para ficar. Seja como for, é preciso fortalecer a auditoria do Tribunal de Contas. Os requisitos para o visto prévio aos contratos do Estado não podem ser meras formalidades e têm de estar dependentes de uma avaliação positiva da sustentabilidade do investimento. Gestão financeira irresponsável tem de ser prevenida e punida exemplarmente.

As autoridades – legislativas, executivas e judiciais – têm de demonstrar sem reservas que a corrupção, o tráfico de influências e o clientelismo não são aceitáveis. O atual contexto de austeridade é uma oportunidade única para introduzir reformas visionárias que reduzam os níveis de corrupção e as estruturas de oportunidade para o crime. Esforços anti-corrupção eficazes e sustentáveis não são um fim em si mesmos, mas um meio de melhorar a governança pública e privada. É este compromisso histórico que esperamos dos nossos líderes.

Este artigo é uma síntese do discurso feito pelo Presidente da TIAC, Luís de Sousa, na apresentação do relatório “Money, Politics, Power: Corruption Risks in Europe”, lançado a 6 de junho de 2012 pela Transparency International.

Um comentário a Portugal, a Europa e a crise

  1. O artigo é importante e enuncia fenómenos de compadrio, corrupação e nepotismo que empobrecem há muito a sociedade portuguesa. Mas cuidado. Devemos ser coerentes. Dizer que a democracia ” não está em risco” é um erro. A não ser que se tenha da democracia o conceito redutor do voto periódico e nada mais. Ainda que assim fosse, a verdade é que só já vota menos de metade da população portuguesa. O resto desinteressou-se desse dever cívico por considerar o seu exercício uma inutilidade. Mas a democracia é muito mais do que o voto periódico. Um país onde a classe média foi aniquilidada, onde a educação foi nivelada por baixo aproximando-a do 3º mundo, onde os valores foram reduzidos à imitação da boçalidade, desde que endinheirada, onde o egocentrismo choca com princípios elementares de cidadania é um País onde a democracia está morta. Melhor, onde a democracia é um mero engodo para enganar a populaça.
    Não atiremos para os outros a culpa que só a nós se deve. Afirmar que Portugal e a Grécia contaram com a “tolerância benévola” das instituições europeias, nos seus défices e endividamento, é tentar responsabilizar outros e desresponsabilizar quem criminosamente atirou o País para o lamaçal. Ou queremos determinar o nosso destino, ou aceitamos que a Europa o faça por nós. Julgo que deveremos exigir responsabilidades aos nossos eleitos. Julgo que deveremos exigir que a Justiça seja rápida e eficiente na condenação da corrupção e do tráfico de influências. Porque há meios legais para responsabilizar os corruptos, ao contrário do que muitos pretendem fazer crer.
    Lamento não ter sido mais breve
    Cumprimentos
    José Barros

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