Os parceiros do descalabro

Introdução de portagens não beneficiou Estado nem utentes

Foto: Público

Por João Paulo Batalha, membro da Direção da TIAC

Foi em “Margarita e o Mestre”, salvo erro na parte sobre o grande baile que o Diabo oferece em Moscovo, que Mikhail Bulgakov escreveu a frase lapidar: “Um facto é a coisa mais teimosa do mundo”. Em Portugal, finalmente, alguma dessa teimosia começa a impor-se no debate público. A auditoria do Tribunal de Contas às subconcessões rodoviárias, agora revelada, trouxe de novo a lume alguns desses factos.

“As parcerias público-privadas (PPP) têm sido fonte de desperdício e má gestão de recursos públicos com enormes custos para o contribuinte”. Esta frase não vem da auditoria publicada no fim de maio de 2012. Vem do documento de trabalho que a TIAC apresentou à Troika, ao Parlamento e ao Governo no início de junho de 2011 – há praticamente um ano.

Na altura, avisámos que a renegociação destas parcerias (prevista, aliás, no programa da Troika) e a fiscalização destes contratos deviam ser encaradas como prioridades absolutas, para aliviar o sufoco fiscal sobre os contribuintes e dar mais equidade e transparência às relações entre o Estado e as grandes empresas envolvidas nas PPP. Infelizmente, quanto mais se sabe sobre estas parcerias mais teimosos se mostram os factos.

Primeiro foi Avelino Jesus a denunciar o “descalabro completo” que as PPP permitem, com lucros milionários para os privados e encargos enormes para o Estado. “A forma como os contratos estão elaborados permite um descalabro completo”, disse esta semana no Parlamento o professor universitário, que se demitiu da comissão de reavaliação das PPP acusando falhas e má vontade do Estado na disponibilização de informação crucial. Articulados demasiado vagos deixam muitas questões em aberto, cuja renegociação implica quase invariavelmente um acréscimo de despesa para o Estado. O resultado: torna-se pura e simplesmente impossível calcular os encargos para o contribuinte, em contratos que estão constantemente a revelar despesas adicionais.

Nem de propósito, logo a seguir a este depoimento surge finalmente a auditoria do Tribunal de Contas ao sistema de concessões rodoviárias (de que já se falava há semanas sem que fosse publicada). Pior do que o descontrolo das despesas com a introdução de portagens nas SCUT – sempre em benefício dos privados e sempre em prejuízo do interesse público –, o Tribunal acusa o Governo de ter escondido informação para conseguir vistos que tinham sido chumbados ao primeiro pedido.

E aqui está uma fragilidade gritante do sistema de controlo, também denunciada pela TIAC no seu estudo Sistema Nacional de Integridade, publicado este mês. Qual é a eficácia da fiscalização do Tribunal de Contas? De que serve um órgão de controlo cuja ação preventiva é facilmente torneada e cujas recomendações são olimpicamente ignoradas? Como se permite que centenas (ou milhares) de milhões de euros de despesa do Estado fujam ao controlo dos órgãos de fiscalização?

Atenta a estes buracos, a TIAC recomendou, no Sistema Nacional de Integridade, que os mecanismos de inspeção das despesas públicas sejam reforçados e a atuação do Tribunal de Contas se torne mais efetiva. Já em junho passado tínhamos apontado a metodologia a seguir para uma renegociação rigorosa destas PPP. Ponto prévio: tem de ser feita por um grupo de trabalho independente, que inclua membros da sociedade civil. Isto se não quisermos novos contratos com os parceiros do “descalabro”, que acabem a ir ainda mais fundo ao bolso dos contribuintes. Para pior, como dizia a canção, já basta assim.

No grande baile do Diabo, escrito por Bulgakov, a festa também era rija. Mas um facto é a coisa mais teimosa do mundo. E o avolumar dos factos, num aparente poço sem fundo, exige que para lá dos diagnósticos, se tomem finalmente medidas claras de transparência. Os tempos exigem gente honesta. Já é hora de as autoridades acordarem.

2 comentários a Os parceiros do descalabro

  1. Quais as consequências do ponto 5 do artº 48º do DL nº111/2012 de 23 de Maio, intitulado “Aplicação no tempo”, pág. 2713, o qual nos reserva esta ‘bela e surpreendente’ redacção:
    “Da aplicação do presente diploma não podem resultar alterações aos contratos de parcerias já celebrados, ou derrogações das regras neles estabelecidas, nem modificações a procedimentos de parceria lançados até à data da sua entrada em vigor.”
    A questão da renegociação não estará, para mal dos nossos pecados, e desculpem-me o termo, já arrumada de vez por este pequeníssimo parágrafo que, me parece, reforça o descalabro em que nos colocaram?
    Se possível, gostaria que me esclarecessem.

    Obrigado pela atenção.

    Pedro Gomes

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    • Não sendo jurista, creio que essa disposição pretende apenas salvaguardar a não retroatividade da lei, ou seja, explicitar que não produz efeitos automáticos a contratos que tenham sido feitos antes da sua entrada em vigor.
      A renegociação das parcerias acordada com a Troika exige que o Governo inicie contactos com os parceiros privados para reduzir os encargos das PPP. A questão é se há ou não vontade política de o fazer, e de o fazer em termos transparentes, que reduzam efetivamente o esforço financeiro do Estado e garantam uma partilha de risco equitativa entre a parte pública e a parte privada.
      Veremos se há ou não empenho dos nossos líderes em limpar a casa e acabar com estes desequilíbrios.

      Responder

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