O que falha em Portugal no combate à corrupção? Muita coisa, revela o estudo Sistema Nacional de Integridade, desenvolvido pela TIAC e que analisou à lupa 13 pilares da sociedade com responsabilidades diretas e indiretas na promoção da transparência e na prevenção e combate à corrupção:
– Assembleia da República;
– Governo;
– Tribunais;
– Administração Pública;
– Ministério Público e Organismos de Investigação Criminal;
– Comissão Nacional de Eleições;
– Provedor de Justiça;
– Tribunal de Contas;
– Organismos Especializados de Combate à Corrupção;
– Partidos Políticos;
– Comunicação Social;
– Sociedade Civil;
– Setor Empresarial.
De uma primeira leitura dos resultados globais resultam duas características transversais aos 13 pilares do Sistema Nacional de Integridade: 1) existe uma grande discrepância entre o enquadramento legal em que os vários pilares do SNI operam e a prática real dessas instituições; 2) não obstante estes organismos gozarem, de um modo geral, de níveis satisfatórios de recursos e independência, o seu papel na prevenção e combate à corrupção permanece invariavelmente limitado.
Uma análise mais fina do modo como os diferentes componentes do SNI se estruturam, funcionam e interagem entre si revela uma série de problemas de fundo que passamos a enumerar:
1. Ausência de política e estratégia. Na base da inoperância do SNI está a ausência de uma orientação política estruturada, com objetivos claros, recursos adequados para a sua execução e metas a atingir;
2. Proliferação de instrumentos e dificuldades de coordenação. Esta ausência de estratégia tem um efeito direto no modo como se estrutura e funciona o SNI. Vão-se multiplicando, num labirinto indecifrável, as leis e os organismos de combate à corrupção sem que se tenha pensado de forma sistémica e orgânica a sua função e os modos de cooperação interinstitucional. As medidas anticorrupção adotadas pelos vários governos estão dispersas (entre várias leis e instrumentos legais) e são inconsistentes (reativas a pressão externa crescente, ao invés de serem desenvolvidas de forma proativa e sustentada). O aparato institucional atual, do lado da repressão, é fragmentado e desprovido de capacidade de coordenação e aplicação sancionatória; do lado da prevenção, está subdesenvolvido.
3. Má qualidade do processo legislativo. O problema de Portugal não é o número de diplomas legais de combate à corrupção, mas o facto de que, propositadamente ou por incompetência do legislador, boa parte destes diplomas contêm várias lacunas e formulações que comprometem a sua implementação eficaz. Muitas das deficiências dos mecanismos de controlo resultam de processos legislativos pouco esclarecidos sobre os problemas de fundo; pouco inclusivos, produto de um debate parlamentar fechado sobre si mesmo, sem consulta ou ignorando os contributos da sociedade civil e dos organismos responsáveis pela implementação dessas medidas; pouco fundamentados sobre os níveis de desempenho dos mecanismos existentes e os custos e benefícios das alternativas propostas; e sem quaisquer mecanismos de avaliação posterior.
4. Manifesta ausência de resultados no domínio da repressão. Portugal apresenta um número escasso de condenações por corrupção e criminalidade conexa e um número quase inexistente de sentenças com pena de prisão efetiva. Embora a repressão não seja um fim em si mesmo, a aplicação da justiça tem um efeito dissuasor importante e não deve por isso ser minada pela proliferação de exceções à lei, atalhos e veredas judiciárias labirínticas que, sob a pretensa proteção das liberdades e garantias dos cidadãos, acabam por construir uma teia de infindáveis recursos que os corruptos mais hábeis, ricos e influentes explorarão em seu benefício, com custos incalculáveis para a imagem e credibilidade da Justiça.
5. Défice de especialização. A falta de especialização faz-se sentir a vários níveis, comprometendo a capacidade de resposta do sistema judicial na prevenção e combate do crime económico, em especial da corrupção e do branqueamento de capitais: inexistência de um organismo ou um sistema de organismos especializados de combate à corrupção; fraco investimento na especialização no âmbito dos programas de formação inicial e contínua dos magistrados judiciais e do Ministério Público; fraco investimento em unidades de perícia forense e de intelligence, junto dos departamentos de investigação e ação penal distritais, com vista à prestação de assistência principalmente nas áreas financeira, contabilística e urbanística; fraco desenvolvimento de bases de dados integradas que permitam uma gestão eficaz dos inquéritos-crime e constituam uma ferramenta essencial de apoio à investigação criminal.
6. Ineficácia dos mecanismos de supervisão, fiscalização e auditoria do Estado. Portugal é o país dos buracos e derrapagens financeiras. Os mecanismos de transparência e acompanhamento da despesa pública são muito rudimentares, oferecendo apenas uma informação contabilística estanque, sem indicadores de produtividade e de eficiência na prestação de serviços que permitam quer a comparação de níveis de desempenho da gestão financeira entre órgãos congéneres (por exemplo, entre empresas públicas, hospitais ou Câmaras Municipais), quer a monitorização do ciclo de execução dos grandes contratos públicos. Cumulativamente, as fiscalizações ou auditorias do Estado são pouco especializadas e centram-se sobretudo em questões formais, em vez de analisarem a boa gestão das contas públicas e a relação custo-benefício dos investimentos, tendo em conta o seu impacto social e o seu sentido de oportunidade. Tudo isto tem implicações negativas na transparência e rigor orçamental a todos os níveis do Estado.
7. Má definição e proteção do interesse público nos negócios do Estado. Ao nível da prevenção, a ação do Governo resumiu-se à adoção de códigos deontológicos genéricos e sem qualquer acompanhamento e avaliação material no seio dos organismos do Estado, bem como à criação de um Conselho de Prevenção da Corrupção que se tem revelado irrelevante. Não só não existe uma definição clara do que é o interesse público na maioria dos negócios do Estado, em particular no que toca a PPP, concessões e outros investimentos públicos, como a avaliação ex-ante de riscos e a monitorização da sua execução não é assegurada. De notar ainda que na montagem, acompanhamento e adjudicação dos negócios públicos existe uma grande permeabilidade a teias de influência que ligam grandes escritórios de advogados, sociedades de auditoria, instituições financeiras, deputados, governantes, autarcas e membros dos partidos políticos. Como resultado, por regra, os riscos associados a estes negócios correm por conta do Estado, leia-se dos contribuintes, enquanto os lucros são garantidos aos privados através de fórmulas contratuais blindadas. A celebração destes contratos ruinosos é facilitada pela complexidade das matérias em questão e pelo recurso, por encomenda, a serviços jurídicos externos à administração – em vez de se optar pela criação de uma unidade técnica pública especializada. Tudo isto é ainda agravado pela forte promiscuidade entre as esferas política e empresarial. Com efeito, as ligações empresariais dos políticos fazem-se sentir em múltiplos setores, e principalmente naqueles em que a atividade/função do Estado é mais rentável, das obras públicas ao ambiente e à energia, das finanças à saúde.
8. Fraco desenvolvimento de um corpo ético na administração pública. Embora as várias reformas de modernização da administração pública tenham aumentado os níveis de eficiência e eficácia, sobretudo através da introdução de novas tecnologias de informação e comunicação, já ao nível da transparência, da imparcialidade e da responsabilização há ainda muito por fazer. Os códigos deontológicos são meras cartas de intenções, sem quaisquer mecanismos que garantam a sua efetiva aplicação, acompanhamento e controlo. As práticas de recrutamento e promoção sem mérito, orientadas por interesses familiares ou partidários, não só colocam a administração pública à mercê de todo o tipo de comportamentos abrasivos do interesse público como desprestigiam a noção de «missão de serviço público».
9. Procedimentos de consulta pública pouco desenvolvidos, quer do ponto de vista legal como da prática. Consultas em matérias sensíveis, como a reforma da Justiça ou o combate à corrupção, ou não existem ou são mera formalidade. Não são apenas os destinatários das políticas que não são ouvidos, mas também os próprios organismos responsáveis pela sua implementação. Esta sistemática relutância em tornar o processo de decisão inclusivo, sem perder a noção da responsabilidade política dos que estão legitimados para tomar as decisões, tem criado um fosso cognitivo das políticas públicas em Portugal, inclusive no que concerne o combate à corrupção. Isto tem contribuído para degradar as expectativas dos cidadãos quanto à real capacidade de resposta das instituições, provocando um distanciamento cada vez mais notório entre os eleitores e os eleitos.
10. Inexistência de métodos de monitorização e avaliação das medidas de combate à corrupção. O combate à corrupção em Portugal faz-se sobretudo ao nível da retórica e numa perspetiva eleitoralista. Os sucessivos programas de Governo aludem apenas à necessidade de reforçar o combate à corrupção, nunca fixando objetivos e meios para os atingir. As autoridades com competências diretas nesta matéria não prestam contas dos resultados conseguidos. A consequência desta falta de monitorização e avaliação do combate à corrupção é a total desresponsabilização dos atores e a ausência de indicadores objetivos que possam informar os processos de decisão e validar (ou não) as diferentes opções políticas.
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