Por Luís de Sousa, Presidente da TIAC
Faz hoje 38 anos, um grupo de militares pegou em armas para, como explicou na altura o capitão Salgueiro Maia, “acabar com o estado a que chegámos”. Esse movimento militar, depois entusiasticamente secundado pela população, pôs fim a uma longa ditadura que condenava Portugal e as antigas colónias a uma existência de opressão, violência e subdesenvolvimento.
38 anos depois, a data é comemorada de forma cinzenta e amargurada. Muitos dos militares que protagonizaram a revolução recusaram participar na cerimónia que a saúda, voltando as costas a uma Assembleia da República que, graças ao 25 de abril, é o órgão que representa as aspirações e a vontade da população. Entre os cidadãos, lamentam-se os fracassos do regime democrático e suspira-se por uma outra revolução, um regresso da História a essa madrugada de esperança, de potencial e de promessa. Aos 38 anos, o regime democrático parece envelhecido e esclerosado.
À cabeça, como causa das queixas e frustrações do país, está a corrupção. Como mostrou o Barómetro Global da Corrupção da Transparency International, em 2010, 83% dos portugueses considerava que os níveis de corrupção tinham aumentado em Portugal nos três anos anteriores. Em 2007, 64% dos portugueses achava ineficaz o combate à corrupção no nosso país. Em 2010, já eram 75%. O corolário de tudo isto: segundo o Barómetro da Qualidade da Democracia, publicado recentemente pelo Instituto de Ciências Sociais, hoje só 55,5% dos portugueses continua a acreditar que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo – em 1999, segundo dados do World Values Survey, esse valor era de 81%.
Como chegámos a isto? Como foi possível, em apenas 38 anos, este desencanto com uma democracia que hoje sentimos viciada pelos pecadilhos dos poderosos? Como foi possível que o país tivesse presenciado impassível esta degradação? Porque, pelo menos na aparência, basta um olhar pelos fóruns de debate na rádio e televisão ou pelas caixas de comentários dos jornais na Internet para confirmar o repúdio dos portugueses face à corrupção.
A questão, no entanto, não é assim tão simples. Os estudos que medem as atitudes da população a este fenómeno apontam um problema de fundo nas sociedades democráticas contemporâneas, não só em Portugal: os cidadãos convivem mal com a corrupção ao nível simbólico, mas ao nível estratégico aceitam a sua funcionalidade.
A maior ou menor prevalência da corrupção numa sociedade democrática depende dos seus níveis de organização e da cultura cívica dos seus cidadãos. A corrupção é um fenómeno de poder e em democracia, de um modo geral, o poder manifesta-se de uma forma competitiva e plural e a relação representativa entre eleitor e eleito organiza-se de uma forma contratual.
Em teoria, as democracias dispõem de um conjunto de regras e mecanismos institucionais que limitam que a corrupção se expanda até níveis incomportáveis. Eleições universais, livres e justas; liberdade de expressão, associação e manifestação; pluralismo político, competição eleitoral e alternância no poder; uma série de contrapesos e garantias constitucionais; uma comunicação social livre e atenta ao exercício do poder; e uma cidadania informada, formada e exigente são alguns dos meios que deviam garantir a salubridade da vida pública.
Só que na prática, não obstante todos estes mecanismos, a corrupção continua a manifestar-se com bastante vigor e frequência em democracia, por vezes com consequências devastadoras para a sua estabilidade e legitimidade. A ineficácia da Justiça no combate à corrupção política e de “colarinho branco” levanta um problema de responsabilização, de accountability. Se no mercado, para além da atuação dos reguladores e da Justiça, o cidadão-consumidor dispõe de poucos instrumentos para combater a venalidade dos empresários; na política, a par da responsabilidade penal, os eleitos estão também obrigados a um conceito de responsabilidade política, peça basilar do contrato de representação.
Em democracia, o voto é o último rácio para restituir à sociedade um conceito de legalidade. O problema é que a punição da corrupção política através do voto nem sempre se materializa. O contrato social de representação é, muitas das vezes, preterido em relação a um contrato social de corrupção que satisfaça as necessidades particulares dos cidadãos – ou seja, tolera-se o corrupto porque ele, para usar o chavão, “rouba, mas faz”. Perdoam-se os pecadilhos do poder, desde que o trabalho apareça feito. Não é afinal essa a função de qualquer governo? – diria o cínico. Não. Não é. As sociedades podem governar-se através do clientelismo, de favorecimentos de ordem vária e da corrupção. Mas até quando? Com que justiça e equidade? Com que legitimidade? Com que custos para as gerações futuras?
Decerto, a democracia que hoje vivemos é substancialmente menos do que a poliarquia ideal desejada, mas também não pode ser refúgio para incompetência e a falta de integridade. É possível fazer melhor. A sociedade tem de exigi-lo. E os partidos políticos, pela centralidade que a Constituição lhes confere na nossa democracia, não podem omitir-se da responsabilidade de exigir maior rigor e transparência, internamente nas suas próprias organizações, assim como no que concerne o desempenho global das instituições da República. A nova revolução por que tantos hoje suspiram não pode ser outra senão esta revolução de exigência, de empenho cívico e de responsabilização de todos. A alternativa é um marasmo cinzento de valores comprometidos, que nos reduz a tristes vítimas do “mal menor”.