Enriquecimento ilícito: crónica de uma morte anunciada

Por Elena Burgoa, Luís de Sousa e João Paulo Batalha, TIAC

Nos últimos meses temos assistido a uma banalização do combate à corrupção: o DCIAP continua na sua atividade fúnebre de enterrar prematuramente processos que envolvem figuras públicas; a Comissão de Ética é da opinião que a resolução de conflitos de interesses é uma questão de consciência individual (uma perspetiva aliás partilhada por uma grande parte dos deputados da Assembleia da República); o Conselho de Prevenção da Corrupção oferece serviços de transparência pós-venda ao setor empresarial do Estado; os comentadores (pseudo-académicos) que povoam os órgãos de comunicação social insurgem-se contra a iniciativa “mesquinha” da ASJP de levar a tribunal 14 ex-ministros por abuso de dinheiros públicos e contra o “populismo” dos que acham que António Borges, não obstante as suas qualidades profissionais, deveria clarificar potenciais conflitos de interesses; e para colmatar esta série de acontecimentos infelizes, o tiro de misericórdia do Tribunal Constitucional à lei de enriquecimento ilícito, aprovada por larga margem na Assembleia da República, mas já moribunda à nascença, o que denota que o voluntarismo da classe política (“de querer mostrar que se faz”) e a vontade política (“de efetivamente fazer”) são duas coisas distintas.

O chumbo do Tribunal Constitucional não surpreende. O acórdão do colégio de juízes é o capítulo final de uma lei que nasceu torta e que a falta de vontade política, o mau trabalho legislativo e a total ausência de foco por parte do legislador foram incapazes de endireitar.

Não foi por falta de aviso. Durante o processo legislativo, a TIAC alertou para a necessidade de formular a lei de forma cuidada e ponderada – e acompanhá-la de um mecanismo robusto e efetivo para fiscalizar a riqueza e os interesses dos eleitos e dos altos cargos públicos (ver PÚBLICO, 23/10/2011). A própria Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção reconhece que a tipificação do crime de enriquecimento ilícito é uma questão melindrosa. No que toca a criminalizar comportamentos, o legislador deve ser cauteloso, aprender com as boas práticas internacionais e ponderar diferentes soluções com cenários de concretização também diferentes. Nada disto foi feito.

Todo este processo, em suma, mostra a forma desorganizada e infeliz com que o Parlamento tem abordado as questões da corrupção, cedendo ao debate apenas sob pressão da sociedade civil – que depois é olimpicamente ignorada – e discutindo problemas acessórios em vez de ir à questão essencial, que é a completa ineficiência do sistema de controlo. A Assembleia aprovou uma formulação multifacetada e muito confusa para o crime de enriquecimento ilícito, alargando indiscriminadamente o seu âmbito para incluir qualquer pessoa, sendo que a qualidade do agente (funcionário, titular de cargo político ou alto cargo político) tem apenas como consequência uma ligeira agravação da pena. Se esta confusão jurídica não fosse suficiente para afundar a lei, a fraca qualidade do trabalho preparatório, patente no desconhecimento generalizado sobre outras experiências internacionais e alternativas à criminalização, e uma cultura recorrente de não consultar especialistas e representantes da sociedade civil no processo legislativo – mesmo nas leis em que o legislador é juiz em causa própria – trataram de garantir o fracasso da iniciativa. Pouco nos consola o passa-culpas dos políticos: tão responsáveis são os que, na ânsia vácua de “mostrar serviço”, aprovaram uma lei confusa e mal formulada como os que, alegando nobres princípios, se escusaram a apresentar alternativas razoáveis, fundamentadas e eficazes.

Sejamos claros: o que é necessário e fundamental é criar um mecanismo que garanta a fiscalização transparente do património e da atuação dos titulares e agentes do Estado. É por aqui que se começa. A atividade pública tem de ser balizada por normas de conduta que garantam a defesa do interesse público e a confiança dos cidadãos.

Já o dissemos antes: a criminalização do enriquecimento ilícito não é uma panaceia, mas não há dúvida de que um bom sistema de controlo da atuação dos agentes públicos e dos seus rendimentos, positivismos legalistas à parte, será um elemento vital no estrangulamento da corrupção. Felizmente, estamos a assistir a uma clara revolução na mentalidade dos cidadãos, um caminho irreversível de intolerância com o crime e de consciência das diversas ferramentas que temos ao dispor para o combater (e que não se limitam à intervenção penal).

O que não pode continuar é uma abordagem redutora do combate à corrupção, sem uma estratégia lógica e coerente. Deixar que o país continue mudo e resignado perante o acumular de situações injustificadas de enriquecimento de agentes públicos não é opção. O tema, portanto, não morre aqui.

Publicado na edição impressa do jornal Público a 19 de abril de 2012

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