Atirar ao lado

Por Luís de Sousa, Presidente da TIAC

A recente iniciativa da ASJP (Associação Sindical dos Juízes Portugueses) relativamente à utilização indevida de cartões de crédito e ao pagamento sem suporte contabilístico de despesas de representação, que culminou na abertura de um processo crime contra 14 ministros do XVIII Governo Constitucional, tem suscitado uma série de reações negativas por parte de alguns comentadores que a classificam de “mesquinha”, “abusiva” e até “perigosa”. Estas interpretações são legítimas mas demonstram uma tendência recorrente no nosso debate mediático: atirar ao lado do que verdadeiramente importa. Estes comentadores confundem a separação de poderes com a inércia dos poderes e as motivações dos denunciantes (porquê) com o propósito da denúncia (para quê).

O que está, afinal, em causa? Em primeiro lugar, está em causa o dever de qualquer cidadão, incluindo os profissionais da justiça, reportar abusos de dinheiros públicos e violações ou obstáculos ao exercício de direitos cívicos (neste caso, o direito de acesso à informação). Se as razões que moveram a ASJP são, na ótica dos comentadores, pouco nobres ou até mesmo vingativas, é uma questão meramente opinativa e irrelevante para o exercício de um direito que a todos nós assiste – ou terão os cidadãos de fazer prova das suas boas intenções para que possam exercer os seus direitos?

O que é facto é que a ASJP cumpriu o dever cívico e profissional de reportar às autoridades uma situação que se configura potencialmente numa utilização indevida de dinheiros públicos. Independentemente da nobreza das razões que os levaram a investir contra o abuso de privilégio por parte de alguns governantes – e independentemente da utilização politica que será feita deste processo pela atual maioria parlamentar (mais interessada em denegrir a oposição do que em governar) –, a opinião pública agradece a iniciativa dos magistrados, embora não deixe de exprimir a sua total insatisfação pelo desempenho da justiça em Portugal, sobretudo no que concerne o combate à corrupção.

Em segundo lugar, a crítica dirigida a esta iniciativa peca por ser superficial. Ficou-se pela forma, esquecendo a substância. O mérito da iniciativa da ASJP é o de abrir um debate sobre duas questões de fundo que afetam diretamente a qualidade da democracia: 1) o acesso a documentação administrativa, sobretudo em áreas de negócios mais sensíveis (como obras públicas, privatizações, PPPs, urbanismo, ambiente, aquisições no sector da defesa, etc.); e 2) a regulação dos privilégios dos detentores de cargos públicos, em especial os que têm poderes de decisão ou supervisão (como ministros e membros de gabinetes ministeriais, reguladores, presidentes de câmara e vereadores em permanência, etc.).

O receio que esta atitude musculada por parte da magistratura judicial face à venalidade do poder político possa consubstanciar uma perigosa violação da separação de poderes é alarmista, desproporcional e fruto de uma conceção conservadora do Estado de Direito, incompatível com as exigências de uma sociedade aberta, transparente e democrática.

Este artigo foi publicado na edição impressa do Público de 4 de abril de 2012

Deixar um comentário

O seu email nunca será publicado ou partilhado.Os campos obrigatórios estão assinalados *

Podes usar estas tags e atributos de HTML:
<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>