Por António Pedro Dores, presidente da Mesa da Assembleia Geral da TIAC
Num recente “debate” televisivo apresentava-se a nova política do racionamento dos cuidados de saúde ou, na expressão mais clara da Drª. Ferreira Leite, a política de abandonar às maleitas os maiores de 70 anos que não puderem pagar as custas da saúde. O facto de os participantes terem sentido necessidade de corrigir a franqueza da senhora – o que ela agradeceu – não reduz o efeito premonitório da ideia que se espalhou pela opinião pública. Tal como quando sugeriu suspender a democracia por seis meses estava, na prática, a antecipar o que veio de facto a acontecer pouco depois em Portugal e, de modo ainda mais evidente, noutros países como a Hungria, a Itália, a Grécia (só que a suspensão, na realidade, é sine die).
Arauto das desgraças, versão política feminina do comentador Medina Carreira, esta personagem política, quando liderou o PSD, então na oposição, destacou-se por ter dado prioridade à luta contra a corrupção, versão alfa da atual política de transparência do governo, em particular a inspiradora do negócio da venda da EDP – denunciado pela TIAC como opaco – ou as controversas nomeações das clientelas políticas para a administração pública em tempo de radical desemprego. De que modo é que a análise da posição da senhora no xadrez político nos pode esclarecer sobre o entendimento dos políticos portugueses sobre a corrupção?
De que corrupção falaria Ferreira Leite e de que transparência falará o governo? E porque o fazem de forma tão seletiva e parcimoniosa que torna muito pouco evidente – aos olhos independentes da TIAC, nomeadamente – que haja uma vontade politicamente organizada de enfrentar a corrupção?
Em 2001 Durão Barroso reconhecia a necessidade de o modelo de desenvolvimento do país deixar de se basear na exploração da mão-de-obra barata e nos baixos salários. Já então, como diz atualmente o governo, era preciso mudar a sociedade – só que na altura não se tinham lembrado da exportação de mão-de-obra jovem qualificada que é agora apresentada como a venda dos anéis para que fiquem os velhos (como num asilo).
Sabemos que as preocupações barrosistas não passaram de breves declarações de campanha, jamais retomadas seja pelo PSD seja pelo PS, cujo consulado Sócrates é acusado – e bem – de não ter sido capaz de inverter a política do cimento e da corrupção associada (por causa da dependência da política face aos financiamentos corruptos).
Passados alguns anos e anunciado o fim do reinado do cimento, soubemos pela TV, por exemplo, que morrem pessoas em Portugal com a doença das vacas loucas, por efeito da corrupção em matadouros, e que esse facto tem sido escondido pelo Estado. E todos os dias há novidades cada vez mais mórbidas.
É longínqua a experiência do PRD, fundado em 1985, contra a corrupção e afundado nela pouco depois de um grande sucesso eleitoral, ao ponto de a sigla ter acabado por ser vendida a um grupúsculo de neonazis.
São mais recentes as queixas de políticos com altas responsabilidades apontando para o topo da hierarquia do Estado como o centro promotor da corrupção em Portugal. A inconsequência, porém, infelizmente mantém-se. Os jogos de sombras que encobrem a corrupção – por exemplo, envolvendo a polícia secreta com negócios dos media – jamais são clarificados, mesmo se a rivalidade entre as personagens políticas sobe de tom para níveis inaudíveis e inacreditáveis.
O PSD apresentou-se com Ferreira Leite como o partido contra a corrupção – e não ganhou a Sócrates. Passos Coelho seguiu as pisadas de forma menos populista: é pela transparência! Mas sobretudo por uma sociedade nova, coisa que muitos dariam tudo para saber do que se trata, já que isso seria importante para orientar a vida.
Não se conhecendo política anticorrupção nem estratégia pró-transparência, pode colocar-se a hipótese de tudo não passar, outra vez, de conversa fiada. Ideologia suscetível de legitimar as políticas de secagem (os brasileiros diriam sacanagem) da economia portuguesa. É isso que dizem os indicadores económicos: mal se começou o ano já se anunciam mais medidas de austeridade, enquanto a economia paralela atinge 25%, número calculado para Moscovo no tempo do capitalismo selvagem e dos gangsters pós-soviéticos.
Somos um país de serviçais que gosta de se apresentar como incorruptível. E desde que a direita alemã enveredou por uma política xenófoba de estigmatização dos países do Sul da Europa logo alguns políticos cata-ventos perceberam que o melhor seria usar essa nossa característica cultural para justificar os sacrifícios próprios da austeridade. Desse modo a verdade germânica seria a verdade portuguesa (“acabou a festa”, disseram: “os credores têm o direito de impor os modos de vida dos devedores” passou a ser moral oficial) e os “bons alunos” continuariam a receber o dinheiro que mantém Portugal como o país mais desigual da União Europeia e a declinar constantemente do ponto de vista económico.
A “Europa connosco” tornou-se numa procissão de sacrifícios na promessa de que a chuva de dinheiro europeu, agora via Troika, continuará a aterrar em Lisboa. Para que os mesmos de sempre continuem a ficar com o caroço e os mesmos de sempre lhe fiquem com o cheiro, em particular as regiões menos poderosas, como as do interior ou o Porto e os que trabalham na economia formal, sem as benesses dos partidos no poder.
Ser contra a corrupção na propaganda sem o ser na prática política foi a forma encontrada para impor o ferrete da culpa num povo explorado pela corrupção, que continua a grassar e mesmo a prosperar, agora numa conjuntura recessiva. Naturalmente isso terá custos importantes. Onde a receita do FMI é aplicada a queda da esperança de vida está calculada em cinco anos. Não é o FMI que vai matar o povo: terão de ser os políticos locais, se quiserem receber as “tranches”. O que implica, logicamente, o racionamento dos cuidados de saúde. Isto é, a morte assistida sem assistência.
Política da “verdade”, a nossa dama de ferro fala com o coração. Intui o nosso destino miserável – sem democracia e sem sistema de saúde para os velhos que não possam pagar – e enlaça-se nele como se isso fosse um progresso inelutável. Isso cai bem no povo humilde e grato por, ao menos uma vez, os políticos se deixarem de tangas e dizerem mesmo o que nos espera. Sim. Estamos só à espera, mas temos o direito de saber como vai ser.
Outros, quais médicos afeminados, com medo de ferir suscetibilidades aos que vão emagrecer e morrer, inventam histórias de betão – fazem obra – ou, mais recentemente, de retoma da credibilidade nos mercados. Estes últimos, sucessores de Ferreira Leite e da sua política de travagem da economia como forma alegadamente moral de ser súbdito dos mercados e continuar a beneficiar dos rendimentos cada vez mais desiguais, avisam que vão acabar com a corrupção dos interesses instalados – os do betão – e dos que viviam à sombra do Estado – porque vêm aí o resto das privatizações.
O forró continua agora, mas ao som dos interesses privados – intocáveis e inquestionáveis na sua imoralidade – como se os salários dos administradores “chineses” da EDP fossem assunto irrelevante para o povo português. Na verdade é o inverso: com a venda da EDP é a vontade do povo português que passará a ser irrelevante para os negócios energéticos globalizados. A conta da eletricidade, como a da nacionalização das pensões dos bancários, já deve estar no correio… E viva a transparência!
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